segunda-feira, 7 de abril de 2014

Tropicália ou o Movimento Organizado


Beatriz Milhazes, O Mágico

Há muito tempo venho me cobrando, e meus alunos também, um texto sobre a Tropicália.

Prefiro chamar Tropicália a chamar Tropicalismo. Tropicalismo me parece mais formal e eles, os tropicalistas, não o eram. Tropicalismo parece coisa científica e como aqui não estou fazendo ciência, senão extravasando minhas interpretações pessoais sobre este movimento organizado, na música, por Caetano Veloso, meu ídolo maior, por Gilberto Gil, Os Mutantes (Rita Lee, Arnaldo e Sérgio Batista), Tom Zé, Gal Costa, Nara Leão, Torquato Neto e Rogério Duprat. Os mais formais e científicos, então, chamem-no Tropicalismo.



Capa do LP "Tropicália Ou Panis Et Circensis", 1968
Minha amiga Poli diz que sou um Veloso que dona Canô jogou no lixo e a quem minha mãe pegou para cuidar. Exageros a parte, tudo isso pra enfatizar minha constante conversa sobre o tema: nem dona Canô me jogaria no lixo, nem minha mãe não é minha mãe! Gosto dessa brincadeira porque certamente inspiro e expiro a Tropicália porque desde menino ouço-a em casa. Minha mãe, e não dona Canô, ouve-a sempre e sempre e até hoje e, como fui criado por ela, uma tropicalista de carteirinha, também herdei a minha carteirinha do clube.

Minha mãe fala dos festivais, das gritarias, das reações, das rixas e eu pude ver em filmes e em documentários, ler em artigos, revistas e livros tudo isso. E desde os meus 14 anos, sempre que Caetano abre a boca, corro pra ouvi-lo porque, afinal, foi ele quem organizou o movimento, como ele próprio afirma nos primeiros versos de seu hino Tropicalista, Tropicália de 1967:



Eu organizo o movimento, eu oriento o carnaval
Eu inauguro o monumento no planalto central do país


Essas gritarias também se podem ouvir na faixa que sai nas antologias tropicalistas com o título de Ambiente de Festival, na qual se ouve um Caetano pré-exilado aos berros de indignação e, na mesma faixa, Proibido Proibir, um Caetano não menos indignado e esbravejando revoltado contra impropérios.

Certa vez, lendo e estudando, achei uma possível definição para a Tropicália, de acordo com a professora Hilda Lontra [1]: A Tropicália é um movimento de vanguarda, resultante de e cronologicamente posterior a outros movimentos de vanguarda literários. Tais manifestações de vanguarda, de acordo com a professora, todas elas anteriores ao movimento de Caetano, tinham a preocupação com a linguagem e com a exteriorização da individualidade, numa perspectiva de nacionalismo capaz de fazer frente ao desafio que os veículos de comunicação de massa lançavam à literatura. Entendendo a perspectiva de nacionalismo como algo que se perdeu da intenção primeira dos modernistas de 22, posto que a poesia moderna tentou, inicialmente, contribuir para combater, de dentro, o academicismo que vigorava em nossas letras, propõe um abrasileiramento da literatura contra o ideário e o estilo europeus que iluminavam a maioria dos textos desde o Realismo.

A partir de 1945, as pressões históricas tanto internacionais como nacionais, numa conjuntura cultural propícia, favoreceram que novas manifestações poéticas se frutificassem para tentar registrar as angústias nacionais, advindas das bases da política brasileira. Por isso, na década de 1950, se vê o Brasil ideologicamente conturbado entre a direita e a esquerda, que se faz arauto dos interesses populares, entendidos como irrelevantes pela força central política vigente (de direita), deixando, assim o campo propício para as vanguardas surgirem e soltarem o verbo, pois todas elas prezavam pelos questionamentos da linguagem, pela busca de formas de expressão inovadoras e originais e pela ideologia nacionalista.



Assim, ainda de acordo com a professora Hilda Lontra, as vanguardas dos anos 50, por essa ótica, podem ser entendidas como uma forma de se recuperarem as ideias modernistas de 22, que, em princípio, também foram entendidas como ideias de nacionalismo, de liberdade e de inovação. 



Então, a Tropicália é movimento de vanguarda, de fundamentação ideológico-literária, divulgado musicalmente por Gilberto Gil e Caetano Veloso, em meios de comunicação de massa, entendido, em sua origem e formação, como o lixo musical, iniciado em meados de 1967 e perdurando até fins de 1973, quando da publicação do LP Araçá Azul [2]. Mas, como ele próprio, Caetano, afirma em seu Verdade Tropical: "A aventura que se iniciou para mim com o tropicalismo não acabou nunca." (Cia das Letras: 1997).   



De qualquer maneira, Caetano justifica seu nacionalismo um tanto neutro: "O nacionalismo dos intelectuais de esquerda, sendo uma mera reação ao imperialismo norte-americano, pouco ou nada tinha a ver com gostar das coisas do Brasil. Qualquer interesse em refinar-se a sensibilidade -fosse o aprofundamento do contato com nossas formas tradicionais, fosse na atitude vanguardista experimental- era considerado um desvio perigoso e irresponsável." [3]

Eu, porém, autor deste texto, organizo o movimento tropicalista (e aqui não estou fazendo ciência), por um ponto de vista totalmente subjetivo e portanto pessoal. Li, estudei e ouvi muito, mas nunca o bastante, para me aventurar em algo, digamos, didático como o que faço agora. Para mim, a Tropicália divide-se em dois momentos:

A. No deboche e na irreverência (ou para usar a palavra da moda da época, o desbunde) e
B. Na crítica.

O deboche e a irreverência se notam na postura deles, bastando observar tão somente o figurino de palco e mesmo o que usavam dia a dia, cotidianamente como, por exemplo:


Capa do LP "Mutantes", de 1969


Caetano no final dos anos 60. Foto Cristiano Mascaro
Ou também nas letras de suas próprias canções e ou nas brincadeiras feitas com os arranjos de músicas tradicionais anteriores ao Movimento. Vejamos as canções Batmacumba (Caetano e Gil), esta de inspiração quiçá concretista, e a futurística 2001 (Tom Zé e Rita Lee). E também as canções Chão de Estrelas [aqui a original] [aqui com Os Mutantes] (Orestes Barbosa e Sílvio Caldas) e Coração Materno [aqui a original] [aqui com Caetano] (Vicente Celestino), essas ridicularizadas sim, mas com pompa e circunstância irônica, mas que vão muito além do ridículo ou da paródia, já que se propõem também à atualização da cultura popular de massa. 

Já a crítica, que também se viu praticamente recheada de deboche e irreverência, é o meu lugar favorito. Aqui, ela se mostra e se faz em duas direções:

A. Em direção contrária à Bossa Nova (veja) e
B. Em direção contrária à Ditadura Militar (1964-1985). 


Quando Caetano Veloso compôs Paisagem Útil, uma marcha-rancho, paródica e metalinguística, o fez num processo de autoafirmação tropicalista, já que Tom Jobim compusera, tempos antes, a Inútil Paisagem. Porém, cumpre observar enfaticamente que, apesar de tais reações, os músicos não são entre si inimigos, não criaram uma arena de guerra de gladiadores, não se hostilizaram nem se ofenderam. O que Caetano Veloso e sua turma tropicalista faziam era uma forma de MUSICALMENTE criarem um novo viés de ver e entender as coisas do Brasil. Negar a Bossa Nova (sim, negar!) não era desgostar dela. Não era diminui-la, até porque seria uma guerra perdida diminuir a Bossa Nova, um estilo musical tão complexo e de qualidade indiscutível. Negar a Bossa Nova era tão somente mostrar um novo caminho, uma nova música, diferente e tão ou mais a cara do Brasil, num processo de colagem -antropofágica?- de elementos nacionais (e ou estrangeiros), mas sobretudo identificatórios e peculiares ao gosto tupiniquim.

É por isso que temos a seguinte declaração de Caetano, quando de suas primeiras explicações sobre o Movimento: "Eu tinha consciência de que estávamos sendo mais fiéis à bossa fazendo algo que lhe era oposto." [3] Sim, como dito, num autêntico processo de autoafirmação!

No mesmo hino tropicalista citado acima, de 1967, Tropicália, Caetano faz da crítica, da irreverência e do deboche, de acordo com ele mesmo em seu Verdade Tropical (Cia das Letras: 1997), sua verve mais afiada contra a Bossa Nova. Ele, quando sugere, ironicamente: Viva a Bossa, Viva a Palhoça, está dizendo que a Bossa é algo sem valor, algo comparado à palhoça. Atacar a Bossa Nova, que era a trilha sonora dos anos 60 e estes, o tempo também da ditadura, é atacar silogisticamente o outro, já que Bossa Nova inspira os anos 60, e os anos 60 inspiram a Bossa Nova.  

Sim, pode ser uma generalização, mas que neste caso coincidiu bem. E não deixa de coincidir de maneira deveras irônica: Se a trilha sonora da Ditadura era de tranquilidade é como se os tempos também fossem tranquilos (era no que se queria acreditar). Os tropicalistas acordes dissonantes, barulhentos até, vêm mostrar que não eram tempos tranquilos. Vêm mostrar que aquilo que vigorava precisava ser descortinado e, mesmo que por meio de barulho, muito barulho, a verdade precisava ser dita. Ou, mesmo que por meio de sutis ironias e ambiguidades poéticas.

Assim, o ataque à sonoridade tranquila e amena da Bossa Nova se dá quando se ouvem os já referidos acordes dissonantes anunciados metalinguisticamente na letra da canção e quando feitos de fato e na prática.



Mas seu coração balança um samba de tamborim
         Emite acordes dissonantes pelos cinco mil alto-falantes [...]


Os bossanovistas subiam ao palco e se apresentavam do alto de suas golas-rolê com gel no cabelo, de terno e gravata. Engomadinhos. Então, ser dissonante a isso é ser tropicalista: subir ao palco com roupa pouco convencional e até mesmo plantando bananeira, quase um bunda-lêlê, mandando tudo o mais “para o inferno”:


             Não disse nada do modelo do meu terno 
             E que tudo mais vá pro inferno, meu bem 
             E que tudo mais vá pro inferno, meu bem

Caetano de "Bunda Lê-lê", no festival de 1968


Edu Lobo (de gola-rolê) na defesa de "Ponteio" no Festival da Canção de 1967
As críticas à Ditadura vão se acentuando com o tempo e lhes valerão, a Caetano e a Gil, o exílio em Londres. São mais fortes em Alegria Alegria [aqui], cujo título é explicado pelo próprio Caetano em seu Verdade Tropical, já citado. São mais fortes em seus discursos e em sua postura política e convictamente elaborados a partir da ideia defendida e apregoada de liberdade contra a censura e contra as forças reacionárias de extrema direita, reforçadas a partir de 1968 com o AI n° 5.


Mas, sendo um movimento de ideologia literária, é na Antropofagia de Oswald de Andrade em que Caetano e Gil vão se inspirar, já também inspirados na arte vanguardista de Helio Oiticica.

Cartaz criado por Hélio Oiticica a partir da foto do bandido Cara de Cavalo morto pela polícia
 
Instalação de Hélio Oiticica em Inhotim (MG) - Acervo pessoal, 2012


E, também, na obra teatral oswaldiana, O Rei da Vela (1937), sua inspiração se concretiza - aqui sem se saber qual delas é a primeira inspiração (isso importa?!).
 
Capa do LP "Estrangeiro", 1991, que reutiliza o cenário original da 1a. apresentação de "O Rei da Vela", 1967

O Rei da Vela era, e ainda o é, como obra de arte atual e contínua, uma crítica feroz e aguçada, porém simbólica, alegórica até, à sociedade capitalista e de consumo. No contexto oswaldiano, o enredo se desenvolve pela crise da bolsa de valores de Nova Iorque, em 1929, que arruína também a burguesia pseudo-aristocrática tupiniquim brasileira.


Ora, não é difícil perceber as aproximações e semelhanças: O contexto sociopolítico de 1937 é uma ditadura, a de Vargas, regida pela presença do capital estrangeiro. Já o contexto sociopolítico de 1967 é também o de uma ditadura, a militar, patrocinada pelo capital norte-americano. Tanto em 37 como em 67 a presença de um estrangeiro, forasteiro incomodou. Tanto em 37 como em 67 as restrições à expressão, à liberdade, etc, levaram Caetano (a partir de 67) a criar, antropofagicamente, ou seja, devorando, direto da fonte, em Oswald de Andrade, o líder da Antropofagia (1928) cultural brasileira, os elementos necessários, não só para atualizar a peça, como também para embasar e ou justificar literariamente seu projeto musical-artístico-vanguardista-poético-social-cultural brasileiro.

           
O Abaporu (1928), Tarsila do Amaral. Tela símbolo do Manifesto Antropofágico de Oswald de Andrade, também de 1928
As aproximações possíveis entre esses momentos histórico-políticos nos possibilitam interpretar suas relações de significado metalinguístico, atribuindo ao processo criativo algo de contínuo e lógico, num exercício de referências e reverências claras ao já posto. A atualização de ícones e símbolos (culturais, musicais, poéticos, artísticos, etc) só reafirmam sua importância e nunca os tiram do jogo e de seu lugar adquirido, apenas reforçam sua permanência, seu sentido, seu significado, sua relevância e sua eternidade para seu povo e para sua cultura.

Veja Também:
Um site (muito legal) dedicado à Tropicália aqui.
A discografia básica tropicalista aqui.
A filmografia tropicalista ou sobre a Tropicália aqui.
Site oficial de Caetano Veloso e sua discografia completa aqui.
Site oficial de Gilberto Gil e sua discografia completa aqui.
Sobre a banda Os Mutantes aqui.
Os filmes: 
Uma Noite em 67 (Direção de Renato Terra e Ricardo Calil, 2010) aqui.
Coração Vagabundo (Direção de Fernando Grostein Andrade, 2009) trailler.
O Cinema Falado (Direção de Caetano Veloso, 1986).
Saravah (Direção de Pierre Barouh, [1969] 2005) aqui
Palavra (En)Cantada (Direção de Helena Solberg, 2009) aqui.
Vinícius (Direção de Miguel Faria Junior, 2006) trailler.
Ouça também:
O álbum Os Mutantes (1968)
O álbum  Estrangeiro (1991), de Caetano Veloso.

 Fernando Medeiros é professor de Literatura.
Prestou-nos gentilmente consultoria histórica a professora Danielle Araújo.
            


Referências e Bibliografia:

[1] Em CYNTRÃO, S. Helena. A Explosão Tropicalista e Seus Estilhaços. UnB, 1999.

[2] Araçá Azul, tendo sido publicado em 1973, encerra, controversamente, o movimento. Embora muitos críticos atribuam ao LP Caetano Veloso, o de "Irene", de 1969, o fim; o próprio Caetano, em Verdade Tropical, 1997:485, fala de um possível fim de sua Tropicália quando chega aos resultados do experimentalismo musical que obteve em Araçá Azul. E ele próprio o confirma ao dizer que, por tal experimentalismo, esse é seu disco de menos vendagem em toda a sua produção. 

[3] Biografias Contigo! Caetano Veloso. Edição 4, 2004.
VELOSO, Caetano. Verdade Tropical. São Paulo: Cia das Letras, 1997.

Nenhum comentário:

Postar um comentário