Beatriz Milhazes, O Mágico |
Há muito tempo
venho me cobrando, e meus alunos também, um texto sobre a Tropicália.
Prefiro chamar
Tropicália a chamar Tropicalismo. Tropicalismo me parece mais formal e eles, os
tropicalistas, não o eram. Tropicalismo parece coisa científica e como aqui não
estou fazendo ciência, senão extravasando minhas interpretações pessoais sobre este
movimento organizado, na música, por Caetano Veloso, meu ídolo maior, por
Gilberto Gil, Os Mutantes (Rita Lee, Arnaldo e Sérgio Batista), Tom Zé, Gal
Costa, Nara Leão, Torquato Neto e Rogério Duprat. Os mais formais e
científicos, então, chamem-no Tropicalismo.
Capa do LP "Tropicália Ou Panis Et Circensis", 1968 |
Minha amiga Poli
diz que sou um Veloso que dona Canô jogou no lixo e a quem minha mãe pegou
para cuidar. Exageros a parte, tudo isso pra enfatizar minha constante
conversa sobre o tema: nem dona Canô me jogaria no lixo, nem minha mãe não é
minha mãe! Gosto dessa brincadeira porque certamente inspiro e expiro a Tropicália
porque desde menino ouço-a em casa. Minha mãe, e não dona Canô, ouve-a sempre e
sempre e até hoje e, como fui criado por ela, uma tropicalista de carteirinha,
também herdei a minha carteirinha do clube.
Minha mãe fala
dos festivais, das gritarias, das reações, das rixas e eu pude ver em filmes e
em documentários, ler em artigos, revistas e livros tudo isso. E desde os meus 14 anos, sempre
que Caetano abre a boca, corro pra ouvi-lo porque, afinal, foi ele quem
organizou o movimento, como ele próprio afirma nos primeiros versos de seu hino
Tropicalista, Tropicália de 1967:
Eu organizo o
movimento, eu oriento o carnaval
Eu inauguro o
monumento no planalto central do país
Essas
gritarias também se podem ouvir na faixa que sai nas antologias tropicalistas
com o título de Ambiente de Festival, na qual se ouve um Caetano pré-exilado aos
berros de indignação e, na mesma faixa, Proibido Proibir, um Caetano não menos
indignado e esbravejando revoltado contra impropérios.
Certa vez,
lendo e estudando, achei uma possível definição para a Tropicália, de acordo
com a professora Hilda Lontra [1]: A Tropicália é um movimento de vanguarda,
resultante de e cronologicamente posterior a outros movimentos de vanguarda
literários. Tais manifestações de vanguarda, de acordo com a professora,
todas elas anteriores ao movimento de Caetano, tinham a preocupação com a
linguagem e com a exteriorização da individualidade, numa
perspectiva de nacionalismo capaz de fazer frente ao desafio que os veículos de
comunicação de massa lançavam à literatura. Entendendo a
perspectiva de nacionalismo como algo que se perdeu da intenção primeira dos modernistas
de 22, posto que a poesia moderna tentou, inicialmente, contribuir para
combater, de dentro, o academicismo que vigorava em nossas letras, propõe um
abrasileiramento da literatura contra o ideário e o estilo europeus que
iluminavam a maioria dos textos desde o Realismo.
A partir de 1945,
as pressões históricas tanto internacionais como nacionais, numa conjuntura
cultural propícia, favoreceram que novas manifestações poéticas se
frutificassem para tentar registrar as
angústias nacionais, advindas das bases da política brasileira. Por isso, na década de 1950, se vê o Brasil ideologicamente conturbado entre a direita e a esquerda,
que se faz arauto dos interesses populares, entendidos como irrelevantes pela
força central política vigente (de direita), deixando, assim o campo propício para as
vanguardas surgirem e soltarem o verbo, pois todas elas prezavam pelos
questionamentos da linguagem, pela busca de formas de expressão inovadoras e
originais e pela ideologia nacionalista.
Assim, ainda de acordo com a professora Hilda Lontra, as
vanguardas dos anos 50, por essa ótica, podem ser entendidas como uma forma de se recuperarem
as ideias modernistas de 22, que, em princípio, também foram entendidas como ideias de nacionalismo, de liberdade e de inovação.
Então, a Tropicália
é movimento de vanguarda, de fundamentação ideológico-literária, divulgado
musicalmente por Gilberto Gil e Caetano Veloso, em meios de comunicação de
massa, entendido, em sua origem e formação, como o lixo musical, iniciado em meados
de 1967 e perdurando até fins de 1973, quando da publicação do LP Araçá Azul [2].
Mas, como ele próprio, Caetano, afirma em seu Verdade Tropical: "A aventura
que se iniciou para mim com o tropicalismo não acabou nunca." (Cia das
Letras: 1997).
De qualquer maneira, Caetano justifica seu nacionalismo um tanto neutro: "O nacionalismo dos intelectuais de esquerda, sendo uma mera reação ao imperialismo norte-americano, pouco ou nada tinha a ver com gostar das coisas do Brasil. Qualquer interesse em refinar-se a sensibilidade -fosse o aprofundamento do contato com nossas formas tradicionais, fosse na atitude vanguardista experimental- era considerado um desvio perigoso e irresponsável." [3]
Eu, porém, autor
deste texto, organizo o movimento tropicalista (e aqui não estou fazendo
ciência), por um ponto de vista totalmente subjetivo e portanto pessoal. Li,
estudei e ouvi muito, mas nunca o bastante, para me aventurar em algo, digamos,
didático como o que faço agora. Para mim, a Tropicália divide-se em dois
momentos:
A. No deboche e na irreverência (ou para usar a palavra da moda da época, o desbunde) e
B. Na crítica.
O deboche e a
irreverência se notam na postura deles, bastando observar tão somente o
figurino de palco e mesmo o que usavam dia a dia, cotidianamente como, por
exemplo:
Capa do LP "Mutantes", de 1969 |
Caetano no final dos anos 60. Foto Cristiano Mascaro |
Ou também nas
letras de suas próprias canções e ou nas brincadeiras
feitas com os arranjos de músicas tradicionais anteriores ao Movimento. Vejamos
as canções Batmacumba (Caetano e
Gil), esta de inspiração quiçá concretista, e a futurística 2001 (Tom Zé e Rita Lee). E também as
canções Chão de Estrelas [aqui a original] [aqui com Os Mutantes] (Orestes
Barbosa e Sílvio Caldas) e Coração
Materno [aqui a original] [aqui com Caetano] (Vicente Celestino), essas ridicularizadas sim, mas com pompa e
circunstância irônica, mas que vão muito além do ridículo ou da
paródia, já que se propõem também à atualização da cultura popular de massa.
Já a crítica,
que também se viu praticamente recheada de deboche e irreverência, é o meu
lugar favorito. Aqui, ela se mostra e se faz em duas direções:
A. Em direção contrária à Bossa Nova (veja) e
B. Em direção contrária à Ditadura Militar (1964-1985).
Quando Caetano Veloso compôs Paisagem Útil, uma marcha-rancho, paródica e metalinguística, o fez num processo de autoafirmação tropicalista, já que Tom Jobim compusera, tempos antes, a Inútil Paisagem. Porém, cumpre observar enfaticamente que, apesar de tais reações, os músicos não são entre si inimigos, não criaram uma arena de guerra de gladiadores, não se hostilizaram nem se ofenderam. O que Caetano Veloso e sua turma tropicalista faziam era uma forma de MUSICALMENTE criarem um novo viés de ver e entender as coisas do Brasil. Negar a Bossa Nova (sim, negar!) não era desgostar dela. Não era diminui-la, até porque seria uma guerra perdida diminuir a Bossa Nova, um estilo musical tão complexo e de qualidade indiscutível. Negar a Bossa Nova era tão somente mostrar um novo caminho, uma nova música, diferente e tão ou mais a cara do Brasil, num processo de colagem -antropofágica?- de elementos nacionais (e ou estrangeiros), mas sobretudo identificatórios e peculiares ao gosto tupiniquim.
É por isso que temos a seguinte declaração de Caetano, quando de suas primeiras explicações sobre o Movimento: "Eu tinha consciência de que estávamos sendo mais fiéis à bossa fazendo algo que lhe era oposto." [3] Sim, como dito, num autêntico processo de autoafirmação!
No mesmo hino
tropicalista citado acima, de 1967, Tropicália,
Caetano faz da crítica, da irreverência e do deboche, de acordo com ele mesmo
em seu Verdade Tropical (Cia das
Letras: 1997), sua verve mais afiada contra a Bossa Nova. Ele, quando sugere,
ironicamente: Viva a Bossa, Viva a Palhoça,
está dizendo que a Bossa é algo sem valor, algo comparado à palhoça. Atacar a
Bossa Nova, que era a trilha sonora dos anos 60 e estes, o tempo também da
ditadura, é atacar silogisticamente o outro, já que Bossa Nova inspira os anos
60, e os anos 60 inspiram a Bossa Nova.
Sim, pode ser
uma generalização, mas que neste caso coincidiu bem. E não deixa de coincidir
de maneira deveras irônica: Se a trilha sonora da Ditadura era de tranquilidade
é como se os tempos também fossem tranquilos (era no que se queria acreditar).
Os tropicalistas acordes dissonantes, barulhentos até, vêm mostrar que não eram
tempos tranquilos. Vêm mostrar que aquilo que vigorava precisava ser
descortinado e, mesmo que por meio de barulho, muito barulho, a verdade
precisava ser dita. Ou, mesmo que por meio de sutis ironias e ambiguidades
poéticas.
Assim, o
ataque à sonoridade tranquila e amena da Bossa Nova se dá quando se ouvem os já
referidos acordes dissonantes anunciados metalinguisticamente na letra da
canção e quando feitos de fato e na prática.
Mas seu coração balança um samba
de tamborim
Emite acordes dissonantes pelos cinco mil alto-falantes [...]
Emite acordes dissonantes pelos cinco mil alto-falantes [...]
Os
bossanovistas subiam ao palco e se apresentavam do alto de suas golas-rolê com
gel no cabelo, de terno e gravata. Engomadinhos. Então, ser dissonante a isso é
ser tropicalista: subir ao palco com roupa pouco convencional e até mesmo plantando bananeira, quase um bunda-lêlê, mandando tudo o mais “para o inferno”:
Não disse nada do modelo do meu terno
E que tudo mais vá pro inferno, meu bem
E que tudo mais vá pro inferno, meu bem
Caetano de "Bunda Lê-lê", no festival de 1968 |
Edu Lobo (de gola-rolê) na defesa de "Ponteio" no Festival da Canção de 1967 |
Mas,
sendo um movimento de ideologia literária, é na Antropofagia de Oswald de
Andrade em que Caetano e Gil vão se inspirar, já também inspirados na arte
vanguardista de Helio Oiticica.
Cartaz criado por Hélio Oiticica a partir da foto do bandido Cara de Cavalo morto pela polícia |
Instalação de Hélio Oiticica em Inhotim (MG) - Acervo pessoal, 2012 |
E, também,
na obra teatral oswaldiana, O Rei da Vela
(1937), sua inspiração se concretiza - aqui sem se saber qual delas é a primeira inspiração (isso importa?!).
Capa do LP "Estrangeiro", 1991, que reutiliza o cenário original da 1a. apresentação de "O Rei da Vela", 1967 |
O Rei da Vela era, e ainda o é, como
obra de arte atual e contínua, uma crítica feroz e aguçada, porém simbólica,
alegórica até, à sociedade capitalista e de consumo. No contexto oswaldiano, o
enredo se desenvolve pela crise da bolsa de valores de Nova Iorque, em 1929,
que arruína também a burguesia pseudo-aristocrática tupiniquim brasileira.
Ora,
não é difícil perceber as aproximações e semelhanças: O contexto sociopolítico
de 1937 é uma ditadura, a de Vargas, regida pela presença do capital estrangeiro.
Já o contexto sociopolítico de 1967 é também o de uma ditadura, a militar,
patrocinada pelo capital norte-americano. Tanto em 37 como em 67
a presença de um estrangeiro, forasteiro incomodou. Tanto em 37 como em 67 as
restrições à expressão, à liberdade, etc, levaram Caetano (a partir de 67) a criar,
antropofagicamente, ou seja, devorando, direto da fonte, em Oswald de Andrade,
o líder da Antropofagia (1928) cultural brasileira, os elementos necessários,
não só para atualizar a peça, como também para embasar e ou justificar
literariamente seu projeto musical-artístico-vanguardista-poético-social-cultural brasileiro.
O Abaporu (1928), Tarsila do Amaral. Tela símbolo do Manifesto Antropofágico de Oswald de Andrade, também de 1928 |
As aproximações possíveis entre esses momentos histórico-políticos nos possibilitam interpretar suas relações de significado metalinguístico, atribuindo ao processo criativo algo de contínuo e lógico, num exercício de referências e reverências claras ao já posto. A atualização de ícones e símbolos (culturais, musicais, poéticos, artísticos, etc) só reafirmam sua importância e nunca os tiram do jogo e de seu lugar adquirido, apenas reforçam sua permanência, seu sentido, seu significado, sua relevância e sua eternidade para seu povo e para sua cultura.
Veja Também:
Um site (muito legal) dedicado à Tropicália aqui.
A discografia básica tropicalista aqui.
A filmografia tropicalista ou sobre a Tropicália aqui.
Site oficial de Caetano Veloso e sua discografia completa aqui.
Site oficial de Gilberto Gil e sua discografia completa aqui.
Sobre a banda Os Mutantes aqui.
Os filmes:
Uma Noite em 67 (Direção de Renato Terra e Ricardo Calil, 2010) aqui.
Coração Vagabundo (Direção de Fernando Grostein Andrade, 2009) trailler.
O Cinema Falado (Direção de Caetano Veloso, 1986).
Saravah (Direção de Pierre Barouh, [1969] 2005) aqui.
Palavra (En)Cantada (Direção de Helena Solberg, 2009) aqui.
Vinícius (Direção de Miguel Faria Junior, 2006) trailler.
Ouça também:
O álbum Os Mutantes (1968)
O álbum Estrangeiro (1991), de Caetano Veloso.
Fernando Medeiros é professor de Literatura.
Prestou-nos gentilmente consultoria histórica a professora Danielle Araújo.
Referências e Bibliografia:
[1] Em CYNTRÃO, S. Helena. A Explosão Tropicalista e Seus Estilhaços. UnB, 1999.
[1] Em CYNTRÃO, S. Helena. A Explosão Tropicalista e Seus Estilhaços. UnB, 1999.
[2] Araçá Azul, tendo sido
publicado em 1973, encerra, controversamente, o movimento. Embora muitos
críticos atribuam ao LP Caetano
Veloso, o de "Irene", de
1969, o fim; o próprio Caetano, em Verdade
Tropical, 1997:485, fala de um possível fim de sua Tropicália quando chega
aos resultados do experimentalismo musical que obteve em Araçá Azul. E ele próprio o confirma ao dizer que, por tal
experimentalismo, esse é seu disco de menos vendagem em toda a sua produção.
[3] Biografias Contigo! Caetano Veloso. Edição 4, 2004.
[3] Biografias Contigo! Caetano Veloso. Edição 4, 2004.
VELOSO,
Caetano. Verdade Tropical. São Paulo:
Cia das Letras, 1997.
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