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quarta-feira, 20 de julho de 2011

Oswald de Andrade e suas raízes pelo século XXI



Oswald de Andrade
 
Aproveitando as comemorações da FLIP em torno do talvez mais barulhento modernista, Oswald de Andrade, atualizo esse bloguezinho aqui com um rápido texto sobre ele.

Falar sobre o gênio modernista, e aqui vai uma crítica, é quase sempre obrigação se falar de seu comportamento pândego e perdulário. Só se fala nisso, talvez pela pouca informação ou pelo pequeno embasamento crítico e teórico que se deve ter acerca dele que foi um dos mais importantes pivôs da fase heroica do nosso século XX. Sim. Ele era assim mesmo. Mas isto não apresenta relevância literária.

Em O Rei da Vela, Abelardo 1 diz: Herdo um tostão de cada morto nacional! É a sanha capitalista devorando o mundo, ainda mais em crise pós-29. Sim, a obra é de 37, da fase icônica do mestre, o que pode ser uma das ironias da vida, porque era um pândego e perdulário criticando agora o sistema capitalista e devorador.

Como se trata de peça teatral, nosso narrador é ausente. Nossos personagens, tais como: Abelardo 1, Abelardo 2 (espécie de alter ego do 1º), Heloísa de Lesbos, Joana (João dos Divãs), Coronel Belarmino, D. Cesarina, D. Poloquinha, Totó Fruta-do-Conde, o Americano, dentre outros, nos personificam não só e evidentemente o capitalismo, como também as hipocrisias e os tabus (eternos) da sociedade, como o avarento, o preguiçoso e o ambicioso, e até o homossexual na lista dos caracteres pejorativos, assim entendido em sua época.

Oswald de Andrade
 
Os elementos da narrativa que se delineiam, tempo e espaço, são o século XX – década de 30 aproximadamente e São Paulo, pré-pós-industrial, aparecendo aí como um microcosmo do Brasil metaforizado, sofrendo a tal crise norte-americana e mundial. Nosso enredo: a fábrica de velas que o Americano quer comprar, mediante a crise financeira por que passa o mundo e o Brasil, pertence à família da esposa de Abelardo 1, que é morto por Abelardo 2. Este se torna o mesmo que Abelardo 1 era, casando-se inclusive com Heloísa, sua esposa, e se torna o mesmo chefe dos negócios da família, desbancando o tal Americano.

Enredo simples sim, mas não se precisa aprofundar o já sabido fato de que em literatura tudo é simbólico. A simbologia crítica presente em Oswald de Andrade, ainda mais em suas obras e em específico (agora) em O Rei da Vela é esclarecedora e abrangente quando de sua atualidade trinta anos depois, em 1967, e ainda hoje, quase 75 anos mais tarde.

Em 1967, depois de permanecer muda, a obra teatral mais importante do modernista é trazida aos palcos brasileiros, salvo engano, pela primeira vez. Foi o Teatro Oficina quem ousou sua montagem, em espetáculo manifesto, nos anos de chumbo do período reacionário ditatorial brasileiro. José Celso Martinez Correa, então a frente do Teatro Oficina, e dirigindo esta montagem, que acentuou as semelhanças contextuais do momento de escritura do texto, 1937, com o de sua encenação, 1967. Criado na ditadura varguista, encenado na ditadura militar. Tanto uma como a outra ditadura patrocinada pelos cofres norte-americanos, têm agora uam interpretação irônica, sarcástica e corrosiva na figura tosca do Americano em cena.


Capa do álbum Estrangeiro (1991) de Caetano Veloso com cenário original de O Rei da Vela de 1967

A percepção do Teatro Oficina foi tão certeira que tal espetáculo manifesto serve de base para a talvez única vanguarda tipicamente nacional, nosso Tropicalismo. As figuras centrais desse movimento, a saber, Caetano e Gil, e o dono dos Parangolés, Hélio Oiticica, se inspiram. Caetano, ao assistir à peça, em momento de rara inspiração musical, compõe aquele que será o hino tropicalista, sua canção Tropicália, gravada em versão épica em seu primeiro álbum solo, também de 1967.

Como dizia, a atualidade de tal obra oswaldiana se mostra certa quando de seu aproveitamento tanto teatral como musical. E é inegável e sabida a contribuição de insatisfação da Tropicália e de todo o seu séquito, como Os Mutantes, na figura central e irreverente de Rita Lee, Gal Costa como sua porta-voz, Tom Zé e Torquato Neto pela contestação lírico-poética e, ainda, o experimentalismo musical de todos eles, além do experimentalismo estético e visual dos Secos e Molhados de Ney Matogrosso, como forma de protesto, não apenas emblemático e simbólico, como evidente manifestação contracultural e política num Brasil reacionário setentista.

E hoje, de maneira mais sutil, talvez, a crítica se mostre mais evidente nos padrões de consumo. Enlatados americanos, inclusive musicais e pseudo-artísticos, podem ser criticados a partir do mesmo ponto de vista oswaldiano do começo do século passado. Quem não observou ainda sua ligação com o Tropicalismo, pode, de maneira mais prática, correr ao Google e pesquisar Jóia de Caetano Veloso, do álbum homônimo, de 1975:

Beira de mar, beira de mar
Beira de mar na América do Sul
Um selvagem levanta o braço
Abre a mão e tira um caju
Um momento de grande amor
De grande amor


Copacabana, Copacabana
Louca total e completamente louca
A menina muito contente
Toca a coca-cola na boca
Um momento de puro amor
De puro amor


É o mesmo sarcasmo, a mesma ironia e o mesmo ato de Oswald de Andrade: de devoração. Caetano devora Oswald. E, como ia dizendo, trazendo para nossos dias tal crítica, observemos a poesia tropicalista de Caetano em evidente devoração do pensamento do mestre modernista.

O Abaporu de Tarsila do Amaral (1928) - emblema do Movimento Antropófago

Primeiro, estávamos na beira do mar na América do Sul. O nosso indígena, selvagem, levanta a mão e tira um caju. Era a nossa especiaria tropical. Era o que interessava e o que tínhamos a oferecer. E era um momento de grande amor inocente, ingênuo e puro, de verdade, porque os índios cederam, de mão beijada, sem o saber, o que tinham, para serem devorados, e ainda não antropofagicamente, sendo dizimados do mapa do Brasil.

Segundo, já em Copacabana. Copacabana louca, total e completamente louca. Por que assim? Louca faria referência ao desvairismo, a uma paulicéia desvairada? Talvez. Mas agora é uma menina. Uma menina muito contente. Contente porque bebe Coca-cola, o símbolo norte-americano e capitalista por excelência. Toca a Coca-Cola na boca como quem a beija. E é um momento de puro amor, de puro amor. É um momento de puro amor também ingênuo e inocente, como o do indígena, já que ela o faz sem se saber consumista e repetitiva de um mesmo ato mecânico e vazio: Beba Coca-Cola! É pura ironia.

Hoje, é só trocar Coca-Cola por McDonald`s. É trocar Tropicalismo e Antropofagia por qualquer uma enlatada cantora americana e, por isso, mundial. Só entender a continuidade de tal consumismo, já criticado em 1937 a mercê de todos nós até hoje. Poucos entendem e poucos enxergam a ferida cutucada. É mais fácil consumir e ser como todos, entrar no esquema e não ser preterido. Assim como é para poucos ler e saber de Oswald de Andrade. É como ele mesmo dizia: Jogar biscoito fino à sociedade.

A diferença entre o que apresenta valor, mesmo pouco entendido e visto, e o que não apresenta é exatamente a continuidade e a atualidade do pensamento que encerra em si. Assim é Oswald de Andrade. Contínuo e atual. Cabe ao Brasil devorá-lo, mastigá-lo e degluti-lo assim como o pai de João Miramar pretendeu. Pelo óbvio.

Fernando Medeiros é professor de Literatura.

quarta-feira, 30 de março de 2011

Macunaíma - Do fundo do mato virgem




Nascido do fundo do mato virgem e filho do medo da noite, Macunaíma, uma criança feia, desde cedo já leva em si marcas físicas negativas, que se estendem ao seu comportamento, o que comprova que sua moral também é abordada negativa e intencionalmente por seu criador, Mário de Andrade, figura central do movimento Modernista Brasileiro e referencial das letras no país. 

O Batizado de Macunaíma - Tarsila do Amaral
          Sua obra, Macunaíma O herói sem nenhum caráter (1928), é uma síntese de raças e culturas distintas, amarrada por lendas folclóricas e indígenas sul-americanas; representa, assim, simultaneamente o povo brasileiro e o homem latino-americano. Caracteriza-se pela diversidade, colhida da mescla de tais lendas e de tradições das mais variadas regiões do país. Sincero e mentiroso, malandro e ingênuo, católico e espírita, freqüenta pontos de macumba e vive pensando em encontrar uma panela com dinheiro enterrada. Índio, branco e negro, possui o dom da magia e grande sensualidade, ambas ligadas à preguiça, enfocada na obra como característica do povo brasileiro. O que se vê é que tal síntese "revela, no dizer de Renato Cordeiro Gomes em seu artigo Cultura e Fundação: Modernismo, Antropofagia e Invenção, o caráter híbrido, mestiço, da cultura que nos constitui, corroendo a concepção de uma cultura ideal e essencialmente pura. Neste sentido, não é à toa que Mário de Andrade deu a seu livro o subtítulo O herói sem nenhum caráter, anunciando desde a abertura, a falta de uma pureza unitária que desse coerência ao personagem (...)". Assim, há em Macunaíma a ausência de um caráter único como formador e característico do povo brasileiro, que a obra representa.
A passagem característica desta obra, na qual o herói torna-se branco e de olhos azuis, no caminho para a civilização, simboliza um batismo social, pelo qual Mário de Andrade desmonta a crença romântica de que a miscigenação ocorrida no Brasil foi de forma pacífica, pois como só Macunaíma consegue usufruir da fonte transformadora e seus irmãos, decepcionados, mesmo vendo que a fonte secara, tentam ávida e agressivamente tornarem-se brancos. É como se, estendendo o fato ficcional a nossa sociedade, as pessoas que sofrem preconceitos raciais estivessem tentando fugir dele, em que tal fuga pudesse representar a transformação racial/social por que passou Macunaíma. Assim, o piá perde suas características de berço e se vê, então, pronto a entrar na 'civilização' branca, automatizada e capitalista.

Grande Otelo como Macunaíma em filme de 1969 - Dir.: Joaquim Pedro de Andrade
 Por este aspecto, pode simbolizar a rapsódia o retrato da extinção de uma tribo, já que, mesmo antes de chegar à civilização, Macunaíma perde o que levava de mais intrínseco: sua cultura. E o contato e a entrada progressivos com este novo mundo só aumentam as perdas deste tipo. A cada novo capítulo, depois de chegar a São Paulo, Macunaíma sofre de uma doença diferente, o que faz pensar que tais doenças são o meio, maior do que o herói, e que ele se corrompe não só fisicamente, apresentando a saúde debilitada, mas também moralmente.
Paralelamente ao estudo antropológico da fusão das raças originais brasileiras, dos costumes peculiares de cada uma delas e dos costumes em especial que apresenta o herói, Mário de Andrade utiliza na obra uma linguagem tão peculiar quanto os traços antropológicos do romance. Tal linguagem funde termos indígenas, africanos, gírias, ditados populares, arcaísmos, neologismos, incorporando, principalmente, elementos da fala à literatura, enquanto a estrutura de composição do romance lembra o folclore. É por isso uma rapsódia, pois é um composto de fragmentos de cantos populares, através dos quais costura os capítulos independentes entre si, embora juntos dêem coesão à história.  
Folclore, contos populares, termos de várias línguas e dialetos nativos, gírias, etc., só justificam a linguagem do romance ser como é. Muito próxima à oral e peculiar, como já foi dito, ao personagem e à obra em geral.
Este distanciamento do padrão gramatical na obra, encarado ideologicamente, remete o leitor à concepção de nacionalismo, em particular do autor, e do movimento Modernista. Pode não ser coincidência o fato de Mário de Andrade, adepto das vanguardas Pau-Brasil e Antropofágica, que valorizavam e incentivavam uma cultura mais brasileira e que eram posicionadas intencionalmente contra a cultura de massa norte-americana, dar voz a um personagem negro, índio e branco (piá, mestiço de índio com branco), analfabeto, tendo em vista seu nascimento, e oriundo de um meio, o rural, no qual a preservação de costumes, crenças e histórias se dão de forma oral. A linguagem da obra e do personagem Macunaíma é singular.



À medida que o herói se distancia de seu meio, sua linguagem se modifica. No princípio do livro, e aí há uma confusão entre o falar do narrador e do personagem, pois ambos falam usando os mesmos recursos, o distanciamento gramatical é mais evidente. Faltam vírgulas na separação de termos de mesma função sintática ("tinha pacova tinha milho tinha macaxeira [...] maracujá-michira ata abio sapota sapotilha...", cap. II, p.27.), há diferença na forma em que se registra a partícula "se": si tem valor condicional ("Vivia deitado mas si punha os olhos em dinheiro..." cap. I, p.09), se é reflexivo ("... Cunhatã se afastava." cap. I, p. 09), desvios ortográficos como guspia por cuspia, rasto por rastro, cogote por cangote, milhor por melhor etc., supressão de preposições e artigos: "(...) e levasse ele * passear no mato (...)" cap.I, p.10, ou "... mas não pôde continuar, * galho quebrou e ambos despencaram..." cap. I, p.13.
Entretanto, não são desvios que comprometem o bom entendimento do livro nem do que pretende expressar o narrador ou o personagem. São, ao contrário, recursos de valorização da linguagem coloquial e oral do povo brasileiro em detrimento da escrita. E para isto reforça-se Macunaíma na carta do capítulo IX, endereçada às Icamiabas, na qual ele, além de usar termos dos quais não sabe exatamente o significado, configurando então um aprendizado falho de uma língua que não é a sua e que não sabe de fato usar, afirma em meio as impressões da civilização: "... a sua riqueza [deste povo] de expressão intelectual é tão prodigiosa, que falam numa língua e escrevem noutra." p.106. E continua: "Nas conversas utilizam-se os paulistanos dum linguajar bárbaro e multifário, crasso de feição e impuro na vernaculidade, mas que não deixa de ter o seu sabor e a força nas apóstrofes, e também nas vozes do brincar. (...) Mas si de tal desprezível língua se utilizam os naturais desta terra, logo que tomam da pena, se despojam de tanta asperidade, e surge o Homem Latino, de Lineu, exprimindo-se numa outra linguagem, mui próxima da vergiliana, no dizer dum panegirista, meigo idioma, que, com imperecível galhardia, se intitula: língua de Camões." p 106-7. 
Quando Macunaíma escreveu esta carta, já se encontrava na cidade há um bom tempo, e, mesmo antes dela, já se percebe usos mais próximos do padrão gramatical como o verbo haver, empregado nos diálogos do herói, as vírgulas e as preposições, etc., empregadas como manda a gramática. 


Porém, como tudo no livro é apresentado de forma gradativa, a linguagem sofre uma diferenciação particular, além de gradativa como o todo da obra, como se o linguajar de Macunaíma, em sua região natal, no princípio do livro, representasse o estágio de aprendizado da língua e também sua identidade, e, com a integração dele nos valores e costumes citadinos, sua linguagem passasse a evoluir gradativamente como o aprendizado de um novo idioma. A isto, pode-se acrescentar ainda mais umas palavras de Renato Cordeiro Gomes, do mesmo artigo citado anteriormente: "É neste sentido de 'fala impura' que se nomeou a narrativa marioandradina, ou o filme, de sem nenhum caráter, isto é, sem característica essencialmente única e pura para dramatizar e caracterizar o ser nacional. Pela 'fala impura' advoga-se uma práxis discursiva que se pauta pela transgressão como forma de expressar criticamente a cultura brasileira, em defesas de suas diferenças, para além da pureza original."    
De tal maneira que "Pouca saúde e muita saúva, os males do Brasil são". Assim mesmo, com o sujeito separado do verbo por uma vírgula execrada pela gramática. É, pois, a transgressão às crenças românticas de miscigenação pacífica no país, à crença de que formou-se o povo brasileiro por um traço único de caráter, às normas gramaticais valorizando uma linguagem mais brasileira do que portuguesa, à realidade com momentos mágicos e ou surreais na narrativa do romance utilizados para criticar posturas sociais velhacas. É nestas transgressões em que se fundamenta o romance, a rapsódia, de um herói sem nenhum caráter, mas tão plural que se torna um referencial, além de crítico da formação brasileira, também literário, pois representa, para o movimento Modernista, a bandeira de valorização da cultura brasileira e, para a sociedade, um arauto de que há nela muita coisa a ser revista e mudada.     

Texto originalmente apresentado na disciplina de Modernismo Brasileiro na Universidade de Brasília - UnB.
Fernando Medeiros é professor de Literatura.