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sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

"Tudo parte de Deus e retorna a ele num eterno ciclo"

Caetano Veloso - Internet
Um dia, ainda na Faculdade de Letras da UnB -ali por 2002-, eu cursava a disciplina de Barroco e Arcadismo no Brasil e fiz um trabalho (muito mesmo) pretensioso, cuja ideia era estudar a Tropicália pelo viés barroco. 

Fui bem na disciplina, mas o professor escreveu no trabalho, como correção, duas coisas: 1. O importante é que este trabalho te envolveu! 2. Mãos à obra! (Não lembro se era essa a ordem dos recados...)

Ou seja: Você está apenas começando, entendi. Hoje sei que apenas começava, mas nunca arregacei as mangas! Por isso sei que foi (muito mesmo) pretensioso... De qualquer forma esses dias achei meu trabalho e, para finalizá-lo, analisava O Quereres, de Caetano Veloso.

Tal análise (apenas um trecho daquele trabalho) segue abaixo exatamente como foi entregue ao professor, salvo uma ou outra alteração boba. Eu gostei e espero que você, meu leitor, também goste!

Trecho do poema na letra (tentativa) de Caetano

O Quereres [1]

Caetano Veloso

Onde queres revólver sou coqueiro, onde queres dinheiro sou paixão
Onde queres descanso sou desejo e onde sou só desejo queres não
E onde não queres nada, nada falta, e onde voas bem alta eu sou o chão
E onde pisas no chão minha alma salta e ganha liberdade na amplidão
Onde queres família sou maluco e onde queres romântico, burguês
Onde queres Leblon sou Pernambuco e onde queres eunuco, garanhão
E onde queres o sim e o não, talvez; onde vês eu não vislumbro razão
Onde queres o lobo eu sou o irmão e onde queres cowboy eu sou chinês
Ah, bruta flor do querer, ah, bruta flor, bruta flor...
Onde queres o ato eu sou o espírito e onde queres ternura eu sou tesão
Onde queres o livre decassílabo e onde buscas o anjo eu sou mulher
Onde queres prazer sou o que dói e onde queres tortura, mansidão
Onde queres o lar, revolução; e onde queres bandido eu sou o herói
Eu queria querer-te e amar o amor, construirmos dulcíssima prisão
Encontrar a mais justa adequação, tudo métrica e rima e nunca dor
Mas a vida é real e de viés, e vê só que cilada o amor me armou
Eu te quero e não queres como sou, não te quero e não queres como és
Ah, bruta flor do querer, ah, bruta flor, bruta flor...
Onde queres comício, flipper-video, e onde queres romance, rock'n'roll
Onde queres a lua eu sou o sol e onde a pura natura, o inseticídeo
Onde queres mistério eu sou a luz, onde queres um canto, o mundo inteiro
Onde queres quaresma, fevereiro; e onde queres coqueiro eu sou obus.
O quereres e o estares sempre a fim do que em mim é de mim tão desigual
Faz-me querer-te bem, querer-te mal, bem a ti, mal ao quereres assim
Infinitivamente pessoal, e eu querendo querer-te sem ter fim
E querendo te aprender o total do querer que há e do que não há em mim...

Álbum Velô (1984), no qual se publica originalmente O Quereres

            Esse poema de Caetano, não propriamente tropicalista, mas como ele próprio afirma ser-lhe a aventura tropicalista sem fim, é talvez uma das mais barrocas de seu inventário.
            Processando-se de forma cíclica, já que se nos apresenta como o primeiro querer o revólver e o último o obus, peças bélicas, a letra é formada toda ela por meio de palavras excludentes que se alternam de acordo com o querer do eu lírico e do querer do receptor da letra, para quem se canta. A situação entre eles é de repulsão e, nesta repulsão, o querer é bruto como uma flor. A sutileza de um desejo, tal qual a de uma flor, é tomada como uma dificuldade, como algo bruto quando poderia não ser.
            Assim, a ciclicidade da letra, os quereres do emissor e receptor, a flor e, inclusive, o futuro do pretérito são antitéticos. E entende-se inclusive o aspecto verbal antiteticamente porque se joga aqui com a condição. Alguma coisa só seria se outra deixasse de ser. Dessa forma, até mesmo a condição implícita no tempo verbal completa, além da ciclicidade, toda a intenção paradoxal e antitética da letra. Completa o barroquismo evidente. A condição implícita pode estar também elíptica, já que, segundo S. Sarduy [2], a essência da mentalidade barroca está associada à elipse. Assim, a brincadeira com a linguagem sem deixar explícito o dizer, sem verbalizar diretamente, é barrocamente elíptica.
            Completa-se, nesse sentido verbal implícito como se, por causa do trabalho da métrica e da rima, no verso tudo métrica e rima e nunca dor,  numa busca da mais justa adequação, a dor fosse presente – como o é. Então, a condição, o contraste é buscar a adequação por métrica e rima, numa tentativa condicional de se chegar a tudo isso sem a dor que normalmente se sente nesse trabalho de busca de afinação conjugal, em que ambos são o que não querem ser e são o que um não quer do outro. Impossível sem dor.
            Tem-se ainda, levantando-se o léxico dessa criação poética, pares de palavras, antíteses mesmo, que encerram ideias profundamente condizentes à repulsão barroca. Tais pares, numa ampliação da leitura, podem ser:
-revólver e coqueiro: guerra e paz;
-dinheiro e paixão: material e espiritual;
-descanso e desejo: paz e licenciosidade;
-desejo e não: licenciosidade e a negação categórica;
-querer nada e nada faltar: satisfação e excesso;
-voar alto e chão: agudo e raso: extremos em que se está;
-pisar o chão e alma voar: o sensual e o espírito longe na amplidão;
-família e maluco: ordem e desequilíbrio;
-romântico e burguês: valores opostos a um mesmo tempo;
-Leblon e Pernambuco: particular e geral;
-eunuco e garanhão: castração e realização;
-sim e não x talvez: certeza e dúvida;
-lobo e irmão: traição e sinceridade;
-ver e não vislumbrar razão: firmeza e perda de referencial;
-cowboy e chinês: ocidente e oriente;
-ato e espírito: físico e metafísico;
-ternura e tesão: sensual e erótico;
-livre e decassílabo: rebeldia e tradição;
-anjo e mulher: assexual e sexual;
-prazer e dor: positivo e negativo;
-tortura e mansidão: dor e prazer;
-lar e revolução: equilíbrio e mudança;
-bandido e herói: amoral e moral;
-comício e flipper-video: maçante e diversão;
-romance e rock'n'roll: final-feliz, suavidade (?) e choque, agressividade;
-lua e sol: escuro e claro;
-pura natura e inseticídio: vida e morte;
-mistério e luz: dúvida e certeza/ ignorância e sabedoria;
-canto e mundo inteiro: particular e universal;
-quaresma e fevereiro: renovação e carnaval (festa da carne: pecado);
-coqueiro e obus: paz e guerra, fechando o ciclo.

http://palavramansa.blogspot.com.br/2011/06/o-quereres.html


           Assim, nos primeiros pares, percebe-se uma dependência entre eles (a paz e a licenciosidade, a licenciosidade e o não), mas que vai se perdendo progressivamente e as palavras passam a marcar alternância entre abstrato e físico, físico e valores sociais e culturais. Tais alternância e ambivalência denotam o sentido e o espírito barroco como resposta ao ser humano independente do século, mas que algumas transformações temporais propiciem essa resposta coerentemente.
            O que se percebe é uma tensão estética que se desdobra na angústia humana patente, angústia tal proveniente da dúvida e da certeza, equilíbrio e desequilíbrio, dor e paixão eternos e cíclicos deste ou daquele século. Desta ou daquela obra de arte.
            Mas, voltando à peça de Caetano, fechando-a, ele nos presenteia com este verso: o que em mim é de mim tão desigual. Assim, comprovando seu espírito e arte barrocos, nos diz que há nele próprio (ou em quem seja o eu lírico) algo de desigual, e que assim, é bem provável, a flor seja mesmo bruta e a dor, embora nunca a quisesse, sempre exista, pois se ele próprio enxerga em si algo de diferente dele, os contrastes partem internamente para o mundo e se eles são paradoxais a visão é, por força, tal qual. Assim, a prisão que não será dulcíssima por isso, o levará eternamente ao querer inicial que o move, porque tudo parte dele e retorna a ele pelo viés da dor. Porque tudo parte de Deus. E retorna, claramente em sentido Barroco.
            Charles A. Perrone [3], analisando a música brasileira contemporânea pelo viés barroco, em especial a canção O que será, de Chico Buarque, diz a respeito dessa canção: Daí a força barroca do texto – a maravilha do ouvinte perante a abundância verbal e perante seu universo com efeito infinito. Esse juízo justo cabe para a composição de Caetano aqui analisada, porquanto as qualidades literárias tanto de uma quanto de outra canção são observadas da mesma maneira por tal juízo.
  
Referências: 
ÁVILA, Afonso (org.). Barroco, teoria e análise. São Paulo: Perspectiva e Companhia Brasileira de Metalurgia, 1997.
VELOSO, Caetano. Verdade Tropical. São Paulo: Cia das Letras, 1997.

    Obs.: Embora jamais me oponha, a intenção deste Blog, ao menos por enquanto, não é fazê-lo uma ode a Caetano. Motivos há e muitos, mas ainda o pretendo um lugar de assuntos gerais sobre Literatura! 

Fernando Medeiros é professor de Literatura.





1 Em Totalmente Demais, 1986 (cd: 1990): Polygram do Brasil.
2 Em Ávila A., 1997.
3 Em Ávila A., 1997.

terça-feira, 29 de março de 2011

Ainda Sobre A Lírica Camoniana




Busque Amor, novas artes, novo engenho, 
Para matar-me, e novas esquivanças; 
Que não pode tirar-me as esperanças, 
Que mal me tirará o que eu não tenho.  

Olhai de que esperanças me mantenho! 
Vede que perigosas seguranças! 
Que não temo contrastes nem mudanças, 
Andando em bravo mar, perdido o lenho.  

Mas, conquanto não pode haver desgosto  
Onde esperança falta, lá me esconde  
Amor um mal, que mata e não se vê;  

Que dias há que na alma me tem posto 
Um não sei quê, que nasce não sei onde, 
Vem não sei como, e dói não sei por quê.

 

            A base lingüística deste soneto de Camões nos leva, primeiramente, a um estranhamento quanto ao uso dos verbos no imperativo.
O poema começa com "busque" e os seguintes imperativos são "olhai" e "vede". Assim, com o pri-meiro verbo tendo por sujeito a 3a. pessoa do singular e os demais a 2a., pode-se dizer então que o eu-lírico refere-se a duas pessoas/entidades distintas, o que uma leitura atenta do poema pode nos indicar que o "busque" refere-se ao Amor (personificado ou não) e o "olhai" e "vede", a qualquer pessoa a quem o eu lírico quer chamar atenção de sua instabilidade emocional. Portanto, de qualquer forma, há algo de interessante nesta diferenciação verbal.  
                Ainda com relação ao uso do vocabulário, o soneto é todo uma ausência, já que "não" e "nem" pulam da superfície textual, comprovando-o: são 10 ocorrências para a negação, que reforçam o sentido da perda de direção (daí "perdido o lenho"), da ausência total de certeza ("Vede que perigosas seguranças" ou "não temo contrastes, nem mudanças"), ou da falta de palavras e vivência ou mesmo de certeza sobre o que lhe aflige (o 2o. terceto inteiro).
                Diante de tal tensão, percebe-se que a lírica camoniana dá vazão ao caos interno do eu-lírico, caracteriza o inefável, foge ao universal e tende ao particular. Mas como amalgama toda a sobriedade clássica à tensão maneirista, cai no discurso retórico assimétrico e o desconcerto pessoal do eu-lírico é evidente, já que os elementos formais primam pela simetria e o dizer poético pela assimetria paradoxal, mas sendo a lógica teórica plausível.



                Forma e conteúdo se tornam miscíveis para a clareação total do soneto: sendo filiado à tradição petrarquiana, a função discursiva do poema é argumentativa; obedecendo ao modelo clássico (soneto/esquema rítmico/tônicas nas 6as. e 10as. sílabas, etc.), sua composição permite por meio de um encadeamento sonoro, aliterações por exemplo, entre as estrofes uma relação poética de proposições e argumentos. A organização formal, assim, do soneto, permite uma marcha ao silogismo da 1a. e 3a. estrofes: primeira, a arte e o engenho do Amor não tiram a esperança do eu-lírico – argumento: o Amor não tirará a esperança de onde não existe. Terceira estrofe: o eu lírico não tem desgosto – argumento: onde falta esperança, não há desgosto: portanto, ele não tem esperança.
                Enquanto a 1a. e 3a. estrofes se organizam silogisticamente, a 2a. e a 4a. o fazem em imagens, paradoxos que acentuam a dúvida sobre o que se não conceitua: amar. Circulando a questão de amar, tudo é paradoxal: "perigosas seguranças"/ "andando em bravo mar, perdido o lenho"/ "um não sei quê (...) que dói não sei onde nem por que."
                Como se vê, Camões é capaz de tirar da desproporção argumentação lógica. Isso o insere no momento de passagem entre o Humanismo/Classicismo, por isso certa inconstância e constância/ modelos padrões formais e inovações temáticas líricas, já que o Humanismo, prenunciando o Renascimento, início dos tempos modernos, é tempo de contrastes (tensão entre novo e velho: medieval e moderno: teocêntrico e antropocêntrico), incertezas e mudanças, procurando defini-lo pelo desconhecido, anunciando de certa forma o Barroco, quando diz: "Busque Amor, novas artes, novo engenho", caindo na retórica do desconcerto. 

Texto originalmente apresentado para a disciplina Renascimento Português - UnB.
Fernando Medeiros é professor de Literatura.