domingo, 3 de abril de 2011

O Desejo de Álvares de Azevedo



 O Meu Desejo
            
Meu desejo? era ser a luva branca
Que essa tua gentil mãozinha aperta:
A camélia que murcha no teu seio,
O anjo que por te ver do céu deserta....

Meu desejo? era ser o sapatinho
Que teu mimoso pé no baile encerra....
A esperança que sonhas no futuro,
As saudades que tens aqui na terra....

Meu desejo? era ser o cortinado
Que não conta os mistérios do teu leito;
Era de teu colar de negra seda
Ser a cruz com que dormes sobre o peito.

Meu desejo? era ser o teu espelho
Que mais bela te vê quando deslaças
Do baile as roupas de escomilha e flores
E mira-te amoroso as nuas graças!

Meu desejo? era ser desse teu leito
De cambraia o lençol, o travesseiro
Com que velas o seio, onde repousas,
Solto o cabelo, o rosto feiticeiro....

Meu desejo? era ser a voz da terra
Que da estrela do céu ouvisse amor!
Ser o amante que sonhas, que desejas
Nas cismas encantadas de languor!
            
            Álvares de Azevedo, em sua poesia "O Meu Desejo", joga com uma carga semântica e simbólica voltada ao sensual, como lhe costuma ser característico.
O poema conta com dois ambientes, dos quais, um deles representa uma festa (onde observa uma dama) e, o outro, o quarto dela, que, segundo parece, representam ambiente público e particular.
O primeiro ambiente é onde está, dança e se diverte uma dama. Por essa dama, o eu lírico nutre um desejo mesmo sexual, pois a simbologia e a semântica do vocabulário escolhido revelam tal desejo, principalmente tendo em vista a carga simbólica encerrada nas palavras luva e sapatinho, que, como tradicionalmente se observa, trazem o erótico em si: tudo o que se calça ou o que se veste, neste movimento repetitivo, em literatura, pode revelar o valor sexual implícito. Entretanto, por ela, a quem rende desejos sexuais, o eu poemático guarda uma distância porque, quando praticamente em todo o poema se lê sobre o que observa o eu lírico e não sobre o que põe em prática, sente saudades e estas são as saudades que tem aqui na terra... 


 
O segundo ambiente, o quarto dessa dama, traduz sua intimidade, já que se lhe entende, conforme se observa na poesia, como o lugar onde se despe, se deita e se mira no espelho com as graças nuas. Pelo levantamento léxico, para se comprovar tal intimidade do aposento, lemos os mistérios de teu leito, como se o leito, personificado, guardasse tudo o que visse e o que se lhe confessa. Ainda por tal levantamento,  percebe-se, neste ambiente um halo de velamento, de impossibilidade de realização do amor porque, o desejo do eu lírico é ser tudo o que está em volta, que, se a toca, o faz levemente, ou se não a toca, se mantém distante, deixando numa evidente posição de velador, observador do corpo, das graças e do sossego de quem ama, privilegiando somente seus sentidos visual e olfativo e seus desejos, o que confere a este amor uma carga puramente sensual por não haver o contato físico carnal.
O que, a esta altura da leitura, pode-se entender como certa inversão de valores  que se dá a partir do amor que se observa subordinado às ambientações. Assim: esperaria-se que, em princípio, lá no baile, o eu lírico sentisse pela dama um amor sensual, despertado pelos sentidos, principalmente pela visão, pelo olfato e pelo tato. Depois, numa esfera mais particular, mais íntima, se percebesse o sexual, pois que, então, na intimidade do leito a liberdade entre eles pudesse levá-los a isto.
Entretanto, como dito, se observa o contrário, e assim pode-se  notar que o eu lírico talvez entenda, lá no baile, o sexual como pulsão, como atração momentânea, que logo passa e que se pode associar então ao arrebatamento do que ele próprio repete seis vezes: o meu desejo. É este o Álvares de Azevedo: o que se lhe revela carnal não passa de um desejo, fruto de sua imaginação.
E, da mesma, forma se pode ver talvez que, quando da intimidade, o sexo lhe fosse propício, surge em cena o amor, que no entendimento do poeta talvez seja aquele mesmo de guarda, de velamento, aquele que somente estando próximo ou estando a  observar, oferecendo-lhe no máximo um abraço ou um acolhimento junto ao peito satisfaça seu desejo, agora sensual, nutrido por aquela dama angelical e pura, que dorme calmamente enquanto, ou porque, ele a vela. 


 
E talvez esse amor sensual, numa ampliação da leitura, subordinado à ambientação da intimidade, seja a forma mais interna, e por isso sincera, de amar, porque ele se passa no interior do leito e a interiorização de um ambiente, como a interiorização de seu sentimento, que livre dos olhares curiosos ou reprovadores do público, não precise ser o sexual como se espera socialmente, bastando-llhe a ternura da companhia e da maciez do colo e do leito. Talvez, e além disso, seja este o amor mais importante, porque é para ele que se dedica a maior parte formal do poema, quatro das seis estrofes.
Desta forma, o que também se pode depreender da leitura do poema é que o amor sincero do eu lírico não corresponde ao que se esperaria do sentimento, enquanto valor social, porque livre dessas amarras, bem ao gosto romântico, o amor é ideal, pela mulher ideal, em que, em sua intimidade e velamento, é verdadeiro e, por isso, eterno, e por uma perspectiva de individualização romântica, vê-se o eu lírico guardando e velando sua amada sem expô-la aos valores aos quais ele se opõe conscientemente.


Texto originalmente apresentado na disciplina de Romantismo Português (sim!) na Universidade de Brasília - UnB.
Fernando Medeiros é professor de Literatura.

Um comentário:

  1. Só me lembro da célebre frase: "Vida de poeta é vida trágica..." Rs!
    Lindo poema!! (Vc falou dele na nossa aula, né?)

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