segunda-feira, 28 de março de 2011

Fernando Pessoa – A pulverização do ser: Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?.










 O que é que já não se escreveu sobre Fernando Pessoa? Pensar em escrever sobre este que é o gigante da língua portuguesa é muita responsabilidade. Escrever, então, seria irresponsabilidade talvez: falo por mim, é claro.

            Digo irresponsabilidade porque começo a pensar, enquanto escrevo, sobre o tanto que se fala e se homenageia “O” poeta português do século XX. Massaud Moisés, crítico literário brasileiro de peso e importância é esclarecedor: “Fernando Pessoa é dos casos mais complexos dentro da literatura portuguesa, tão fortemente perturbador que só o futuro virá a compreendê-lo e julgá-lo como merece. [...] Tudo, portanto, que se disser hoje como análise e julgamento de sua poesia, não passa duma tentativa provisória de compreender uma insólita personalidade literária e uma obra de carregada e densa problemática.”   

Porém, é o ateu Saramago que diz (com sua pontuação peculiaríssima) naquele seu livro que lhe rendeu o Prêmio Nobel, único da Língua Portuguesa, na passagem em que conversavam Deus, Jesus e Diabo, numa canoa, em alto mar, debaixo de denso nevoeiro, por quarenta dias, assim:

“... Mas então, perguntou Pastor, quem vai criar o Deus inimigo. Jesus não sabia responder, Deus, se calado estava, calado ficou, porém do nevoeiro desceu uma voz que disse, Talvez este Deus e o que há-de vir não sejam mais do que heterónimos, De quem, de quê, perguntou, curiosa, outra voz, De Pessoa, foi o que se percebeu, mas também podia ter sido Da Pessoa. Jesus, Deus e o Diabo começaram por fazer de conta que não tinham ouvido, mas logo a seguir entreolharam-se com susto, o medo comum é assim, une facilmente as diferenças...”

            Deus, Jesus e Diabo com medo de Pessoa numa sutil e discreta passagem em O Evangelho Segundo Jesus Cristo. Medo propriamente não seja talvez o que ele desperta nos mortais, mas admiração, reverência e ainda muita curiosidade por haver ainda muito que se estudar e descobrir. A existência pacata e comum do homem Fernando Pessoa não deixou muitos registros do que teria feito de comum em vida. E também mesmo sua poesia, quase toda inédita e revelada após sua morte, guardada em inúmeros papéis e imensos volumes numa hoje tão cobiçada arca, de posse de sua única sobrinha viva, Manuela Nogueira, guarda muita novidade. O conteúdo da tal arca foi incorporado ao acervo da Biblioteca Nacional de Lisboa em 134 rolos de microfilme, num total de mais de 27.000 páginas. E a arca de Fernando Pessoa continua a lançar quase anualmente volumes inéditos de sua poesia.

            Mas não é mais novidade a criação quase esquizofrênica pessoana, que sabemos serem seus heterônimos. É este o ponto. Fernando Pessoa, num exercício coerentíssimo de (re)invenção da vida humana, cria, dentre muitos, os famosos Ricardo Reis (símbolo da forma humanística de ver o mundo, de espírito clássico, do qual o culto às odes e ao paganismo é característico), Álvaro de Campos (poeta moderno, típico do século XX, engenheiro, homem rebelde, revoltado e contestador), Alberto Caeiro (poeta, que mesmo nascido em Lisboa, foge para o campo por ser um homem da natureza e por querer viver simplesmente) e o semi-heterônimo Bernardo Soares (ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa, único dos quatro que não escreve poesia; sua existência se documenta pelo Livro do Desassossego). 
 
Os três se conheciam, conviviam, se apresentavam um ao outro, tinham por mestre o mesmo Caeiro, mas tudo imaginariamente. Isso é nele o que incomoda e, se a função do poeta, em certa medida, é incomodar, dentre várias outras finalidades, ele consegue. Mas não me refiro ao incomodar negativo, à chateação, penso no incômodo que a literatura promove por ser literatura, a arte da palavra, por definição, então, metalinguística.

            Incomoda imaginar como e por que essa pulverização do ser. Como nada dá errado? Como tudo se encaixa tão perfeitamente? Esses dias, assistindo a um documentário, especialmente para a preparação deste texto, alguém falava que os heterônimos pessoanos são lados de sua personalidade não trabalhados por ele próprio. Seria um caso clínico mesmo, mas o que em momento algum, é claro, diminui homem e obra.

            Isso, de caso clínico, agora não importa, por não apresentar relevância, digamos, literária. O que importa é mesmo a pulverização e a criação heterogênea de Pessoa a partir da invenção dos heterônimos citados antes. O que importa é o resultado consistente, amplo, significativo e, quando por nada, interessante e instigador, que sua obra nos lega. Massaud Moisés é quem diz: “A poesia, elevada ao mais alto grau, entroniza-se como a forma ideal de expressar a nova cosmovisão, e sintetiza toda uma filosofia de vida estética, sem compromisso com ideologias de caráter histórico”. A nova cosmovisão era, segundo Pessoa, no número 1 da Orpheu, a fusão espontânea de elementos africanos, europeus, americanos e da Oceania que resultariam "uma arte-todas-as-artes". Diria ainda: “uma inspiração espontaneamente complexa.”

            À vida, Fernando Antonio Nogueira Pessoa chega em 1888 e dela se vai em 1935, na cidade de Lisboa. Passou uma parte de sua infância e pré-adolescência na África do Sul. Tais detalhes biográficos, repetidos à exaustão, são importantes para se vislumbrar alguns dados da carreira de poeta. Ter vivido na África do Sul, na cidade de Durban, colocou-o em contato com a língua inglesa, na qual também criou heterônimos e na qual também se expressou da mesma maneira que o fez em língua materna. E, além disso, um outro mundo cultural se lhe abre as portas e, neste sentido, em vez de se debruçar também sobre o novo, se debruça ainda mais sobre o seu mundo materno, principalmente quando se observa que Fernando Pessoa ignorou a África, por onde passou e onde viveu, e de sua obra em inglês também pouco ou quase nada se fala, mais por conta da crítica e de seu público do que por culpa ou intenção propriamente suas.

             Difícil é marcar o início de sua produção literária, mas sabe-se que desde criança escreve versos como, por exemplo, a seguinte quadrinha escrita em homenagem a sua mãe:
  
Eis-me aqui em Portugal
nas terras onde nasci
por muito que goste delas
ainda gosto mais de ti.

Segundo sua sobrinha, Manuela Nogueira, talvez pelo ponto de vista familiar, esta quadrinha guarda traços da criança inteligente que fora Pessoa. Segundo ela, está explícito nestas quatro linhas o amor à pátria, o amor à mãe e o medo de, já tendo perdido o pai, vir também a perder a mãe.



            Contudo e de qualquer maneira, segundo Massaud, sabe-se que ele integrou em sua personalidade literária tudo quanto constituía conquista válida do lirismo tradicional, aquele que, a largos traços, tem seus pontos altos nas cantigas de amor, em Camões, Bocage, Antero, Cesário Verde, Camilo Pessanha, etc., conseguindo superar e enriquecer, ainda de acordo com Massaud, a velha herança recebida, refletindo em si as grandes inquietações humanas do começo do século XX.

             Desta forma, para compreender a poesia pessoana é necessário entender que o poeta, além de guardar em si o espólio tradicional da poesia portuguesa, guardava também as inquietações de seu tempo, em função da Guerra, das modificações quanto à velocidade, quanto às máquinas no mundo ocidental, o que, certamente, formou seu caráter, deixando-o vazar para sua obra. E, ainda de acordo com Massaud, a conseqüência disto é que sua poesia se torna uma espécie de painel gigantesco dos registros das vicissitudes históricas de seu tempo tão conturbado e abalado pelos conflitos mundiais.

Então, diante deste grande painel, a partir de 1914, nascem seus heterônimos e é a partir do ano seguinte que sua contribuição para as revistas e publicações que impulsionariam o Modernismo em seu país começariam a surgir. A parceria de nosso poeta com Almada Negreiros e com Mário de Sá Carneiro é frutífera porque, juntos, lançam a revista Orpheu, citada acima, e que embora tenha circulado em apenas dois números, é o marco do Modernismo em Portugal, momento em que as mentes, segundo Massaud Moisés, se elevam para planos de universal indagação e para a tomada de consciência de uma angústia geral. A causa é óbvia: a Guerra de 14.

Este momento de nítida crise, provocada pela necessidade de abandonar as velhas e tradicionais formas da civilização e cultura, os coloca em direção à busca de novas fórmulas substitutivas, completa Massaud. O passado, caótico e destruído, abriria espaço para, exigindo até, a tal cosmovisão, que vive a ausência de verdades absolutas.


            Assim, no dizer de Massaud Moisés, Pessoa adiante com a ideia de cosmovisão, passa ao intento de ordenar o caos a sua volta, disposto a compreender os seres e as coisas, em busca de verdades que sejam capazes ou de resistir à impressão de desmoronamento total ou de superar a inconstância relativa de tudo, passando do relativo ao absoluto. Como, ainda de acordo com o professor Massaud Moisés, para entender o absoluto seja necessária uma multiplicidade de visões, era necessário, por isso, ser todos que existem, existiram e existirão, para ver e sentir como eles. Assim, é que Pessoa passa ao fenômeno da heteronímia. Pela voz de Álvaro de Campos, nos lembra:

Multipliquei-me, para me sentir,
Para me sentir, precisei sentir tudo,
Transbordei-me, não fiz senão extravasar-me.
                 
Porém, apesar de complexa, sua criação é consciente porque, no prefácio às Ficções do Interlúdio, é Pessoa quem diz: “Umas figuras insiro em contos, ou em subtítulos de livros, e assino com o meu nome o que eles dizem; outras projecto em absoluto e não assino senão com o dizer que as fiz.” Mais adiante, no mesmo prefácio, continua: “Compararei algumas destas figuras, para mostrar, pelo exemplo, em que consistem essas diferenças. O ajudante de guarda-livros Bernardo Soares e o Barão de Teive – são ambos figuras minhamente alheias – escrevem com a mesma substância de estilo, a mesma gramática, e o mesmo tipo de forma de propriedade: é que escrevem com o estilo que, bom ou mau, é o meu.” E diz que compara as duas porque são exemplos de um mesmo fenômeno, que é a inadaptação à realidade da vida. Porém, além da constante inadaptação em sua obra, o que mais chama atenção nisso tudo é o vocábulo: “minhamente”!

No mesmo Prefácio, continua o Poeta: “há notáveis semelhanças, por outra, entre Bernardo Soares e Álvaro de Campos. Mas, desde logo, surge em Álvaro de Campos o desleixo do português, o desatado das imagens, mais íntimo e menos propositado que o de Soares”. E completando seu parecer, diz: “por isso em Ficções do Interlúdio predomina o verso. Em prosa é mais difícil de se outrar”. Sim, outrar é agora o nosso vocábulo!

Os heterônimos são, assim, meios de mostrar a complexidade do real ao homem Fernando. Por não poder, lógico, se transformar em todos os seres viventes, pulveriza-se em seus heterônimos, símbolos literários, para através de cada um deles, entender a cosmovisão única que cada um apresenta e que, apesar de única, resulta de um mesmo tempo e das mesmas contingências vividas. O que vai mudar aí em cada um deles é a ótica, o ponto de vista que absorve os acontecimentos. Daí, as personalidades dos heterônimos, pessoas inventadas, contribuir para o estilo e temas literários apresentados, marcando a individualidade coerente, mas intrinsecamente ligada uma às outras pela mão pessoana, já que são, de uma forma ou outra, alter-ego do poeta.

Portanto, o jogo do ser ou do não ser, ou o jogo do ser e do não ser, a base de sua criação, faz de toda afirmativa ou idéia feita ser logo destruída, simplesmente destruída, negando toda ela que não implique em contradição e, assim, segundo Massaud Moisés, acaba reduzindo a nada aquelas ‘verdades’ aceitas e impostas pela tradição e o comodismo intelectual, contra o qual se bate Álvaro de Campos.

Pessoa, ao mesmo tempo em que foi poeta foi filósofo. Foi filosofando contra os deuses e o infinito que deixou a marca de sua existência pacata mas provando-a evidentemente conturbada. Porém, o sem número de seguidores e de admiradores, o sem número de homenagens e o reconhecimento dado a ele após sua morte há quase oitenta anos; o intento épico e alcançado de figurar ao lado de Camões como o maior poeta da língua portuguesa, além de outros aspectos, dão a ele o lugar merecido. Nas palavras de Massaud Moisés: “a mais alta vocação poética da Europa do século XX, vocação que nos coloca diante de uma excepcional aparelhagem estético-literária, das mais privilegiadas e estranhas da Literatura Portuguesa de todos os tempos”.
 
Nota: O site Casa Fernando Pessoa (www.casafernandopessoa.cm-lisboa.pt) traz a lista completa com mais de 70 personagens e heterônimos criados por Fernando Pessoa.


Este texto foi originalmente preparado para a edição número 3 da extinta Revista Leitura&Crítica.
Fernando Medeiros é Professor de Literatura.

2 comentários:

  1. Pessoa é o escritor que mais profundamente me tocou durante os anos de minha graduação. Ainda hoje, lendo-o, supreendo-me vendo em cada heterônimo um Pessoa completo e um ser autônomo. Alberto Caeiro é, também, meu mestre, com sua visão tão singela e perfeita da divindade e do cotidiano. Com Álvaro de Campos me fundo no correr louco do meu dia-a-dia urbano, me surpreendo a cada dia. Por fim, de quando em quando, tenho o prazer de ser literata e contida como Reis,estudando, crescendo.

    Que prazer ler sobre ele no seu blog. Que prazer vê-lo comentado com tanta maestria. Bravo!

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  2. E quando sinto saudade... É só ler Fernando Pessoa para me lembrar de Fernando EM Pessoa! Maravilhoso... Como tudo o que vc faz! Parabéns pelo blog! =D

    BeijO*

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