terça-feira, 29 de março de 2011

Ainda Sobre A Lírica Camoniana




Busque Amor, novas artes, novo engenho, 
Para matar-me, e novas esquivanças; 
Que não pode tirar-me as esperanças, 
Que mal me tirará o que eu não tenho.  

Olhai de que esperanças me mantenho! 
Vede que perigosas seguranças! 
Que não temo contrastes nem mudanças, 
Andando em bravo mar, perdido o lenho.  

Mas, conquanto não pode haver desgosto  
Onde esperança falta, lá me esconde  
Amor um mal, que mata e não se vê;  

Que dias há que na alma me tem posto 
Um não sei quê, que nasce não sei onde, 
Vem não sei como, e dói não sei por quê.

 

            A base lingüística deste soneto de Camões nos leva, primeiramente, a um estranhamento quanto ao uso dos verbos no imperativo.
O poema começa com "busque" e os seguintes imperativos são "olhai" e "vede". Assim, com o pri-meiro verbo tendo por sujeito a 3a. pessoa do singular e os demais a 2a., pode-se dizer então que o eu-lírico refere-se a duas pessoas/entidades distintas, o que uma leitura atenta do poema pode nos indicar que o "busque" refere-se ao Amor (personificado ou não) e o "olhai" e "vede", a qualquer pessoa a quem o eu lírico quer chamar atenção de sua instabilidade emocional. Portanto, de qualquer forma, há algo de interessante nesta diferenciação verbal.  
                Ainda com relação ao uso do vocabulário, o soneto é todo uma ausência, já que "não" e "nem" pulam da superfície textual, comprovando-o: são 10 ocorrências para a negação, que reforçam o sentido da perda de direção (daí "perdido o lenho"), da ausência total de certeza ("Vede que perigosas seguranças" ou "não temo contrastes, nem mudanças"), ou da falta de palavras e vivência ou mesmo de certeza sobre o que lhe aflige (o 2o. terceto inteiro).
                Diante de tal tensão, percebe-se que a lírica camoniana dá vazão ao caos interno do eu-lírico, caracteriza o inefável, foge ao universal e tende ao particular. Mas como amalgama toda a sobriedade clássica à tensão maneirista, cai no discurso retórico assimétrico e o desconcerto pessoal do eu-lírico é evidente, já que os elementos formais primam pela simetria e o dizer poético pela assimetria paradoxal, mas sendo a lógica teórica plausível.



                Forma e conteúdo se tornam miscíveis para a clareação total do soneto: sendo filiado à tradição petrarquiana, a função discursiva do poema é argumentativa; obedecendo ao modelo clássico (soneto/esquema rítmico/tônicas nas 6as. e 10as. sílabas, etc.), sua composição permite por meio de um encadeamento sonoro, aliterações por exemplo, entre as estrofes uma relação poética de proposições e argumentos. A organização formal, assim, do soneto, permite uma marcha ao silogismo da 1a. e 3a. estrofes: primeira, a arte e o engenho do Amor não tiram a esperança do eu-lírico – argumento: o Amor não tirará a esperança de onde não existe. Terceira estrofe: o eu lírico não tem desgosto – argumento: onde falta esperança, não há desgosto: portanto, ele não tem esperança.
                Enquanto a 1a. e 3a. estrofes se organizam silogisticamente, a 2a. e a 4a. o fazem em imagens, paradoxos que acentuam a dúvida sobre o que se não conceitua: amar. Circulando a questão de amar, tudo é paradoxal: "perigosas seguranças"/ "andando em bravo mar, perdido o lenho"/ "um não sei quê (...) que dói não sei onde nem por que."
                Como se vê, Camões é capaz de tirar da desproporção argumentação lógica. Isso o insere no momento de passagem entre o Humanismo/Classicismo, por isso certa inconstância e constância/ modelos padrões formais e inovações temáticas líricas, já que o Humanismo, prenunciando o Renascimento, início dos tempos modernos, é tempo de contrastes (tensão entre novo e velho: medieval e moderno: teocêntrico e antropocêntrico), incertezas e mudanças, procurando defini-lo pelo desconhecido, anunciando de certa forma o Barroco, quando diz: "Busque Amor, novas artes, novo engenho", caindo na retórica do desconcerto. 

Texto originalmente apresentado para a disciplina Renascimento Português - UnB.
Fernando Medeiros é professor de Literatura.

Um comentário:

  1. Fê, gostei tanto do seu blog....poesia e sua compreensão da poesia, suas palavras sobre palavras outras que por meio de sua voz gráfica continuam a ressoar e se abrem para os nossos sentidos num fronte virtual.
    Tá de pagabéns amigo!
    :-D

    ResponderExcluir