Nascido do fundo do mato virgem e filho do medo da noite, Macunaíma, uma criança feia, desde cedo já leva em si marcas físicas negativas, que se estendem ao seu comportamento, o que comprova que sua moral também é abordada negativa e intencionalmente por seu criador, Mário de Andrade, figura central do movimento Modernista Brasileiro e referencial das letras no país.
O Batizado de Macunaíma - Tarsila do Amaral |
Sua obra, Macunaíma O herói sem nenhum caráter (1928), é uma síntese de raças e culturas distintas, amarrada por lendas folclóricas e indígenas sul-americanas; representa, assim, simultaneamente o povo brasileiro e o homem latino-americano. Caracteriza-se pela diversidade, colhida da mescla de tais lendas e de tradições das mais variadas regiões do país. Sincero e mentiroso, malandro e ingênuo, católico e espírita, freqüenta pontos de macumba e vive pensando em encontrar uma panela com dinheiro enterrada. Índio, branco e negro, possui o dom da magia e grande sensualidade, ambas ligadas à preguiça, enfocada na obra como característica do povo brasileiro. O que se vê é que tal síntese "revela, no dizer de Renato Cordeiro Gomes em seu artigo Cultura e Fundação: Modernismo, Antropofagia e Invenção, o caráter híbrido, mestiço, da cultura que nos constitui, corroendo a concepção de uma cultura ideal e essencialmente pura. Neste sentido, não é à toa que Mário de Andrade deu a seu livro o subtítulo O herói sem nenhum caráter, anunciando desde a abertura, a falta de uma pureza unitária que desse coerência ao personagem (...)". Assim, há em Macunaíma a ausência de um caráter único como formador e característico do povo brasileiro, que a obra representa.
A passagem característica desta obra, na qual o herói torna-se branco e de olhos azuis, no caminho para a civilização, simboliza um batismo social, pelo qual Mário de Andrade desmonta a crença romântica de que a miscigenação ocorrida no Brasil foi de forma pacífica, pois como só Macunaíma consegue usufruir da fonte transformadora e seus irmãos, decepcionados, mesmo vendo que a fonte secara, tentam ávida e agressivamente tornarem-se brancos. É como se, estendendo o fato ficcional a nossa sociedade, as pessoas que sofrem preconceitos raciais estivessem tentando fugir dele, em que tal fuga pudesse representar a transformação racial/social por que passou Macunaíma. Assim, o piá perde suas características de berço e se vê, então, pronto a entrar na 'civilização' branca, automatizada e capitalista.
Grande Otelo como Macunaíma em filme de 1969 - Dir.: Joaquim Pedro de Andrade |
Por este aspecto, pode simbolizar a rapsódia o retrato da extinção de uma tribo, já que, mesmo antes de chegar à civilização, Macunaíma perde o que levava de mais intrínseco: sua cultura. E o contato e a entrada progressivos com este novo mundo só aumentam as perdas deste tipo. A cada novo capítulo, depois de chegar a São Paulo, Macunaíma sofre de uma doença diferente, o que faz pensar que tais doenças são o meio, maior do que o herói, e que ele se corrompe não só fisicamente, apresentando a saúde debilitada, mas também moralmente.
Paralelamente ao estudo antropológico da fusão das raças originais brasileiras, dos costumes peculiares de cada uma delas e dos costumes em especial que apresenta o herói, Mário de Andrade utiliza na obra uma linguagem tão peculiar quanto os traços antropológicos do romance. Tal linguagem funde termos indígenas, africanos, gírias, ditados populares, arcaísmos, neologismos, incorporando, principalmente, elementos da fala à literatura, enquanto a estrutura de composição do romance lembra o folclore. É por isso uma rapsódia, pois é um composto de fragmentos de cantos populares, através dos quais costura os capítulos independentes entre si, embora juntos dêem coesão à história.
Folclore, contos populares, termos de várias línguas e dialetos nativos, gírias, etc., só justificam a linguagem do romance ser como é. Muito próxima à oral e peculiar, como já foi dito, ao personagem e à obra em geral.
Este distanciamento do padrão gramatical na obra, encarado ideologicamente, remete o leitor à concepção de nacionalismo, em particular do autor, e do movimento Modernista. Pode não ser coincidência o fato de Mário de Andrade, adepto das vanguardas Pau-Brasil e Antropofágica, que valorizavam e incentivavam uma cultura mais brasileira e que eram posicionadas intencionalmente contra a cultura de massa norte-americana, dar voz a um personagem negro, índio e branco (piá, mestiço de índio com branco), analfabeto, tendo em vista seu nascimento, e oriundo de um meio, o rural, no qual a preservação de costumes, crenças e histórias se dão de forma oral. A linguagem da obra e do personagem Macunaíma é singular.
À medida que o herói se distancia de seu meio, sua linguagem se modifica. No princípio do livro, e aí há uma confusão entre o falar do narrador e do personagem, pois ambos falam usando os mesmos recursos, o distanciamento gramatical é mais evidente. Faltam vírgulas na separação de termos de mesma função sintática ("tinha pacova tinha milho tinha macaxeira [...] maracujá-michira ata abio sapota sapotilha...", cap. II, p.27.), há diferença na forma em que se registra a partícula "se": si tem valor condicional ("Vivia deitado mas si punha os olhos em dinheiro..." cap. I, p.09), se é reflexivo ("... Cunhatã se afastava." cap. I, p. 09), desvios ortográficos como guspia por cuspia, rasto por rastro, cogote por cangote, milhor por melhor etc., supressão de preposições e artigos: "(...) e levasse ele * passear no mato (...)" cap.I, p.10, ou "... mas não pôde continuar, * galho quebrou e ambos despencaram..." cap. I, p.13.
Entretanto, não são desvios que comprometem o bom entendimento do livro nem do que pretende expressar o narrador ou o personagem. São, ao contrário, recursos de valorização da linguagem coloquial e oral do povo brasileiro em detrimento da escrita. E para isto reforça-se Macunaíma na carta do capítulo IX, endereçada às Icamiabas, na qual ele, além de usar termos dos quais não sabe exatamente o significado, configurando então um aprendizado falho de uma língua que não é a sua e que não sabe de fato usar, afirma em meio as impressões da civilização: "... a sua riqueza [deste povo] de expressão intelectual é tão prodigiosa, que falam numa língua e escrevem noutra." p.106. E continua: "Nas conversas utilizam-se os paulistanos dum linguajar bárbaro e multifário, crasso de feição e impuro na vernaculidade, mas que não deixa de ter o seu sabor e a força nas apóstrofes, e também nas vozes do brincar. (...) Mas si de tal desprezível língua se utilizam os naturais desta terra, logo que tomam da pena, se despojam de tanta asperidade, e surge o Homem Latino, de Lineu, exprimindo-se numa outra linguagem, mui próxima da vergiliana, no dizer dum panegirista, meigo idioma, que, com imperecível galhardia, se intitula: língua de Camões." p 106-7.
Quando Macunaíma escreveu esta carta, já se encontrava na cidade há um bom tempo, e, mesmo antes dela, já se percebe usos mais próximos do padrão gramatical como o verbo haver, empregado nos diálogos do herói, as vírgulas e as preposições, etc., empregadas como manda a gramática.
Porém, como tudo no livro é apresentado de forma gradativa, a linguagem sofre uma diferenciação particular, além de gradativa como o todo da obra, como se o linguajar de Macunaíma, em sua região natal, no princípio do livro, representasse o estágio de aprendizado da língua e também sua identidade, e, com a integração dele nos valores e costumes citadinos, sua linguagem passasse a evoluir gradativamente como o aprendizado de um novo idioma. A isto, pode-se acrescentar ainda mais umas palavras de Renato Cordeiro Gomes, do mesmo artigo citado anteriormente: "É neste sentido de 'fala impura' que se nomeou a narrativa marioandradina, ou o filme, de sem nenhum caráter, isto é, sem característica essencialmente única e pura para dramatizar e caracterizar o ser nacional. Pela 'fala impura' advoga-se uma práxis discursiva que se pauta pela transgressão como forma de expressar criticamente a cultura brasileira, em defesas de suas diferenças, para além da pureza original."
De tal maneira que "Pouca saúde e muita saúva, os males do Brasil são". Assim mesmo, com o sujeito separado do verbo por uma vírgula execrada pela gramática. É, pois, a transgressão às crenças românticas de miscigenação pacífica no país, à crença de que formou-se o povo brasileiro por um traço único de caráter, às normas gramaticais valorizando uma linguagem mais brasileira do que portuguesa, à realidade com momentos mágicos e ou surreais na narrativa do romance utilizados para criticar posturas sociais velhacas. É nestas transgressões em que se fundamenta o romance, a rapsódia, de um herói sem nenhum caráter, mas tão plural que se torna um referencial, além de crítico da formação brasileira, também literário, pois representa, para o movimento Modernista, a bandeira de valorização da cultura brasileira e, para a sociedade, um arauto de que há nela muita coisa a ser revista e mudada.
Texto originalmente apresentado na disciplina de Modernismo Brasileiro na Universidade de Brasília - UnB.
Fernando Medeiros é professor de Literatura.
Fernando Medeiros é professor de Literatura.