quarta-feira, 30 de março de 2011

Macunaíma - Do fundo do mato virgem




Nascido do fundo do mato virgem e filho do medo da noite, Macunaíma, uma criança feia, desde cedo já leva em si marcas físicas negativas, que se estendem ao seu comportamento, o que comprova que sua moral também é abordada negativa e intencionalmente por seu criador, Mário de Andrade, figura central do movimento Modernista Brasileiro e referencial das letras no país. 

O Batizado de Macunaíma - Tarsila do Amaral
          Sua obra, Macunaíma O herói sem nenhum caráter (1928), é uma síntese de raças e culturas distintas, amarrada por lendas folclóricas e indígenas sul-americanas; representa, assim, simultaneamente o povo brasileiro e o homem latino-americano. Caracteriza-se pela diversidade, colhida da mescla de tais lendas e de tradições das mais variadas regiões do país. Sincero e mentiroso, malandro e ingênuo, católico e espírita, freqüenta pontos de macumba e vive pensando em encontrar uma panela com dinheiro enterrada. Índio, branco e negro, possui o dom da magia e grande sensualidade, ambas ligadas à preguiça, enfocada na obra como característica do povo brasileiro. O que se vê é que tal síntese "revela, no dizer de Renato Cordeiro Gomes em seu artigo Cultura e Fundação: Modernismo, Antropofagia e Invenção, o caráter híbrido, mestiço, da cultura que nos constitui, corroendo a concepção de uma cultura ideal e essencialmente pura. Neste sentido, não é à toa que Mário de Andrade deu a seu livro o subtítulo O herói sem nenhum caráter, anunciando desde a abertura, a falta de uma pureza unitária que desse coerência ao personagem (...)". Assim, há em Macunaíma a ausência de um caráter único como formador e característico do povo brasileiro, que a obra representa.
A passagem característica desta obra, na qual o herói torna-se branco e de olhos azuis, no caminho para a civilização, simboliza um batismo social, pelo qual Mário de Andrade desmonta a crença romântica de que a miscigenação ocorrida no Brasil foi de forma pacífica, pois como só Macunaíma consegue usufruir da fonte transformadora e seus irmãos, decepcionados, mesmo vendo que a fonte secara, tentam ávida e agressivamente tornarem-se brancos. É como se, estendendo o fato ficcional a nossa sociedade, as pessoas que sofrem preconceitos raciais estivessem tentando fugir dele, em que tal fuga pudesse representar a transformação racial/social por que passou Macunaíma. Assim, o piá perde suas características de berço e se vê, então, pronto a entrar na 'civilização' branca, automatizada e capitalista.

Grande Otelo como Macunaíma em filme de 1969 - Dir.: Joaquim Pedro de Andrade
 Por este aspecto, pode simbolizar a rapsódia o retrato da extinção de uma tribo, já que, mesmo antes de chegar à civilização, Macunaíma perde o que levava de mais intrínseco: sua cultura. E o contato e a entrada progressivos com este novo mundo só aumentam as perdas deste tipo. A cada novo capítulo, depois de chegar a São Paulo, Macunaíma sofre de uma doença diferente, o que faz pensar que tais doenças são o meio, maior do que o herói, e que ele se corrompe não só fisicamente, apresentando a saúde debilitada, mas também moralmente.
Paralelamente ao estudo antropológico da fusão das raças originais brasileiras, dos costumes peculiares de cada uma delas e dos costumes em especial que apresenta o herói, Mário de Andrade utiliza na obra uma linguagem tão peculiar quanto os traços antropológicos do romance. Tal linguagem funde termos indígenas, africanos, gírias, ditados populares, arcaísmos, neologismos, incorporando, principalmente, elementos da fala à literatura, enquanto a estrutura de composição do romance lembra o folclore. É por isso uma rapsódia, pois é um composto de fragmentos de cantos populares, através dos quais costura os capítulos independentes entre si, embora juntos dêem coesão à história.  
Folclore, contos populares, termos de várias línguas e dialetos nativos, gírias, etc., só justificam a linguagem do romance ser como é. Muito próxima à oral e peculiar, como já foi dito, ao personagem e à obra em geral.
Este distanciamento do padrão gramatical na obra, encarado ideologicamente, remete o leitor à concepção de nacionalismo, em particular do autor, e do movimento Modernista. Pode não ser coincidência o fato de Mário de Andrade, adepto das vanguardas Pau-Brasil e Antropofágica, que valorizavam e incentivavam uma cultura mais brasileira e que eram posicionadas intencionalmente contra a cultura de massa norte-americana, dar voz a um personagem negro, índio e branco (piá, mestiço de índio com branco), analfabeto, tendo em vista seu nascimento, e oriundo de um meio, o rural, no qual a preservação de costumes, crenças e histórias se dão de forma oral. A linguagem da obra e do personagem Macunaíma é singular.



À medida que o herói se distancia de seu meio, sua linguagem se modifica. No princípio do livro, e aí há uma confusão entre o falar do narrador e do personagem, pois ambos falam usando os mesmos recursos, o distanciamento gramatical é mais evidente. Faltam vírgulas na separação de termos de mesma função sintática ("tinha pacova tinha milho tinha macaxeira [...] maracujá-michira ata abio sapota sapotilha...", cap. II, p.27.), há diferença na forma em que se registra a partícula "se": si tem valor condicional ("Vivia deitado mas si punha os olhos em dinheiro..." cap. I, p.09), se é reflexivo ("... Cunhatã se afastava." cap. I, p. 09), desvios ortográficos como guspia por cuspia, rasto por rastro, cogote por cangote, milhor por melhor etc., supressão de preposições e artigos: "(...) e levasse ele * passear no mato (...)" cap.I, p.10, ou "... mas não pôde continuar, * galho quebrou e ambos despencaram..." cap. I, p.13.
Entretanto, não são desvios que comprometem o bom entendimento do livro nem do que pretende expressar o narrador ou o personagem. São, ao contrário, recursos de valorização da linguagem coloquial e oral do povo brasileiro em detrimento da escrita. E para isto reforça-se Macunaíma na carta do capítulo IX, endereçada às Icamiabas, na qual ele, além de usar termos dos quais não sabe exatamente o significado, configurando então um aprendizado falho de uma língua que não é a sua e que não sabe de fato usar, afirma em meio as impressões da civilização: "... a sua riqueza [deste povo] de expressão intelectual é tão prodigiosa, que falam numa língua e escrevem noutra." p.106. E continua: "Nas conversas utilizam-se os paulistanos dum linguajar bárbaro e multifário, crasso de feição e impuro na vernaculidade, mas que não deixa de ter o seu sabor e a força nas apóstrofes, e também nas vozes do brincar. (...) Mas si de tal desprezível língua se utilizam os naturais desta terra, logo que tomam da pena, se despojam de tanta asperidade, e surge o Homem Latino, de Lineu, exprimindo-se numa outra linguagem, mui próxima da vergiliana, no dizer dum panegirista, meigo idioma, que, com imperecível galhardia, se intitula: língua de Camões." p 106-7. 
Quando Macunaíma escreveu esta carta, já se encontrava na cidade há um bom tempo, e, mesmo antes dela, já se percebe usos mais próximos do padrão gramatical como o verbo haver, empregado nos diálogos do herói, as vírgulas e as preposições, etc., empregadas como manda a gramática. 


Porém, como tudo no livro é apresentado de forma gradativa, a linguagem sofre uma diferenciação particular, além de gradativa como o todo da obra, como se o linguajar de Macunaíma, em sua região natal, no princípio do livro, representasse o estágio de aprendizado da língua e também sua identidade, e, com a integração dele nos valores e costumes citadinos, sua linguagem passasse a evoluir gradativamente como o aprendizado de um novo idioma. A isto, pode-se acrescentar ainda mais umas palavras de Renato Cordeiro Gomes, do mesmo artigo citado anteriormente: "É neste sentido de 'fala impura' que se nomeou a narrativa marioandradina, ou o filme, de sem nenhum caráter, isto é, sem característica essencialmente única e pura para dramatizar e caracterizar o ser nacional. Pela 'fala impura' advoga-se uma práxis discursiva que se pauta pela transgressão como forma de expressar criticamente a cultura brasileira, em defesas de suas diferenças, para além da pureza original."    
De tal maneira que "Pouca saúde e muita saúva, os males do Brasil são". Assim mesmo, com o sujeito separado do verbo por uma vírgula execrada pela gramática. É, pois, a transgressão às crenças românticas de miscigenação pacífica no país, à crença de que formou-se o povo brasileiro por um traço único de caráter, às normas gramaticais valorizando uma linguagem mais brasileira do que portuguesa, à realidade com momentos mágicos e ou surreais na narrativa do romance utilizados para criticar posturas sociais velhacas. É nestas transgressões em que se fundamenta o romance, a rapsódia, de um herói sem nenhum caráter, mas tão plural que se torna um referencial, além de crítico da formação brasileira, também literário, pois representa, para o movimento Modernista, a bandeira de valorização da cultura brasileira e, para a sociedade, um arauto de que há nela muita coisa a ser revista e mudada.     

Texto originalmente apresentado na disciplina de Modernismo Brasileiro na Universidade de Brasília - UnB.
Fernando Medeiros é professor de Literatura.

terça-feira, 29 de março de 2011

Ainda Sobre A Lírica Camoniana




Busque Amor, novas artes, novo engenho, 
Para matar-me, e novas esquivanças; 
Que não pode tirar-me as esperanças, 
Que mal me tirará o que eu não tenho.  

Olhai de que esperanças me mantenho! 
Vede que perigosas seguranças! 
Que não temo contrastes nem mudanças, 
Andando em bravo mar, perdido o lenho.  

Mas, conquanto não pode haver desgosto  
Onde esperança falta, lá me esconde  
Amor um mal, que mata e não se vê;  

Que dias há que na alma me tem posto 
Um não sei quê, que nasce não sei onde, 
Vem não sei como, e dói não sei por quê.

 

            A base lingüística deste soneto de Camões nos leva, primeiramente, a um estranhamento quanto ao uso dos verbos no imperativo.
O poema começa com "busque" e os seguintes imperativos são "olhai" e "vede". Assim, com o pri-meiro verbo tendo por sujeito a 3a. pessoa do singular e os demais a 2a., pode-se dizer então que o eu-lírico refere-se a duas pessoas/entidades distintas, o que uma leitura atenta do poema pode nos indicar que o "busque" refere-se ao Amor (personificado ou não) e o "olhai" e "vede", a qualquer pessoa a quem o eu lírico quer chamar atenção de sua instabilidade emocional. Portanto, de qualquer forma, há algo de interessante nesta diferenciação verbal.  
                Ainda com relação ao uso do vocabulário, o soneto é todo uma ausência, já que "não" e "nem" pulam da superfície textual, comprovando-o: são 10 ocorrências para a negação, que reforçam o sentido da perda de direção (daí "perdido o lenho"), da ausência total de certeza ("Vede que perigosas seguranças" ou "não temo contrastes, nem mudanças"), ou da falta de palavras e vivência ou mesmo de certeza sobre o que lhe aflige (o 2o. terceto inteiro).
                Diante de tal tensão, percebe-se que a lírica camoniana dá vazão ao caos interno do eu-lírico, caracteriza o inefável, foge ao universal e tende ao particular. Mas como amalgama toda a sobriedade clássica à tensão maneirista, cai no discurso retórico assimétrico e o desconcerto pessoal do eu-lírico é evidente, já que os elementos formais primam pela simetria e o dizer poético pela assimetria paradoxal, mas sendo a lógica teórica plausível.



                Forma e conteúdo se tornam miscíveis para a clareação total do soneto: sendo filiado à tradição petrarquiana, a função discursiva do poema é argumentativa; obedecendo ao modelo clássico (soneto/esquema rítmico/tônicas nas 6as. e 10as. sílabas, etc.), sua composição permite por meio de um encadeamento sonoro, aliterações por exemplo, entre as estrofes uma relação poética de proposições e argumentos. A organização formal, assim, do soneto, permite uma marcha ao silogismo da 1a. e 3a. estrofes: primeira, a arte e o engenho do Amor não tiram a esperança do eu-lírico – argumento: o Amor não tirará a esperança de onde não existe. Terceira estrofe: o eu lírico não tem desgosto – argumento: onde falta esperança, não há desgosto: portanto, ele não tem esperança.
                Enquanto a 1a. e 3a. estrofes se organizam silogisticamente, a 2a. e a 4a. o fazem em imagens, paradoxos que acentuam a dúvida sobre o que se não conceitua: amar. Circulando a questão de amar, tudo é paradoxal: "perigosas seguranças"/ "andando em bravo mar, perdido o lenho"/ "um não sei quê (...) que dói não sei onde nem por que."
                Como se vê, Camões é capaz de tirar da desproporção argumentação lógica. Isso o insere no momento de passagem entre o Humanismo/Classicismo, por isso certa inconstância e constância/ modelos padrões formais e inovações temáticas líricas, já que o Humanismo, prenunciando o Renascimento, início dos tempos modernos, é tempo de contrastes (tensão entre novo e velho: medieval e moderno: teocêntrico e antropocêntrico), incertezas e mudanças, procurando defini-lo pelo desconhecido, anunciando de certa forma o Barroco, quando diz: "Busque Amor, novas artes, novo engenho", caindo na retórica do desconcerto. 

Texto originalmente apresentado para a disciplina Renascimento Português - UnB.
Fernando Medeiros é professor de Literatura.

segunda-feira, 28 de março de 2011

Fernando Pessoa – A pulverização do ser: Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?.










 O que é que já não se escreveu sobre Fernando Pessoa? Pensar em escrever sobre este que é o gigante da língua portuguesa é muita responsabilidade. Escrever, então, seria irresponsabilidade talvez: falo por mim, é claro.

            Digo irresponsabilidade porque começo a pensar, enquanto escrevo, sobre o tanto que se fala e se homenageia “O” poeta português do século XX. Massaud Moisés, crítico literário brasileiro de peso e importância é esclarecedor: “Fernando Pessoa é dos casos mais complexos dentro da literatura portuguesa, tão fortemente perturbador que só o futuro virá a compreendê-lo e julgá-lo como merece. [...] Tudo, portanto, que se disser hoje como análise e julgamento de sua poesia, não passa duma tentativa provisória de compreender uma insólita personalidade literária e uma obra de carregada e densa problemática.”   

Porém, é o ateu Saramago que diz (com sua pontuação peculiaríssima) naquele seu livro que lhe rendeu o Prêmio Nobel, único da Língua Portuguesa, na passagem em que conversavam Deus, Jesus e Diabo, numa canoa, em alto mar, debaixo de denso nevoeiro, por quarenta dias, assim:

“... Mas então, perguntou Pastor, quem vai criar o Deus inimigo. Jesus não sabia responder, Deus, se calado estava, calado ficou, porém do nevoeiro desceu uma voz que disse, Talvez este Deus e o que há-de vir não sejam mais do que heterónimos, De quem, de quê, perguntou, curiosa, outra voz, De Pessoa, foi o que se percebeu, mas também podia ter sido Da Pessoa. Jesus, Deus e o Diabo começaram por fazer de conta que não tinham ouvido, mas logo a seguir entreolharam-se com susto, o medo comum é assim, une facilmente as diferenças...”

            Deus, Jesus e Diabo com medo de Pessoa numa sutil e discreta passagem em O Evangelho Segundo Jesus Cristo. Medo propriamente não seja talvez o que ele desperta nos mortais, mas admiração, reverência e ainda muita curiosidade por haver ainda muito que se estudar e descobrir. A existência pacata e comum do homem Fernando Pessoa não deixou muitos registros do que teria feito de comum em vida. E também mesmo sua poesia, quase toda inédita e revelada após sua morte, guardada em inúmeros papéis e imensos volumes numa hoje tão cobiçada arca, de posse de sua única sobrinha viva, Manuela Nogueira, guarda muita novidade. O conteúdo da tal arca foi incorporado ao acervo da Biblioteca Nacional de Lisboa em 134 rolos de microfilme, num total de mais de 27.000 páginas. E a arca de Fernando Pessoa continua a lançar quase anualmente volumes inéditos de sua poesia.

            Mas não é mais novidade a criação quase esquizofrênica pessoana, que sabemos serem seus heterônimos. É este o ponto. Fernando Pessoa, num exercício coerentíssimo de (re)invenção da vida humana, cria, dentre muitos, os famosos Ricardo Reis (símbolo da forma humanística de ver o mundo, de espírito clássico, do qual o culto às odes e ao paganismo é característico), Álvaro de Campos (poeta moderno, típico do século XX, engenheiro, homem rebelde, revoltado e contestador), Alberto Caeiro (poeta, que mesmo nascido em Lisboa, foge para o campo por ser um homem da natureza e por querer viver simplesmente) e o semi-heterônimo Bernardo Soares (ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa, único dos quatro que não escreve poesia; sua existência se documenta pelo Livro do Desassossego). 
 
Os três se conheciam, conviviam, se apresentavam um ao outro, tinham por mestre o mesmo Caeiro, mas tudo imaginariamente. Isso é nele o que incomoda e, se a função do poeta, em certa medida, é incomodar, dentre várias outras finalidades, ele consegue. Mas não me refiro ao incomodar negativo, à chateação, penso no incômodo que a literatura promove por ser literatura, a arte da palavra, por definição, então, metalinguística.

            Incomoda imaginar como e por que essa pulverização do ser. Como nada dá errado? Como tudo se encaixa tão perfeitamente? Esses dias, assistindo a um documentário, especialmente para a preparação deste texto, alguém falava que os heterônimos pessoanos são lados de sua personalidade não trabalhados por ele próprio. Seria um caso clínico mesmo, mas o que em momento algum, é claro, diminui homem e obra.

            Isso, de caso clínico, agora não importa, por não apresentar relevância, digamos, literária. O que importa é mesmo a pulverização e a criação heterogênea de Pessoa a partir da invenção dos heterônimos citados antes. O que importa é o resultado consistente, amplo, significativo e, quando por nada, interessante e instigador, que sua obra nos lega. Massaud Moisés é quem diz: “A poesia, elevada ao mais alto grau, entroniza-se como a forma ideal de expressar a nova cosmovisão, e sintetiza toda uma filosofia de vida estética, sem compromisso com ideologias de caráter histórico”. A nova cosmovisão era, segundo Pessoa, no número 1 da Orpheu, a fusão espontânea de elementos africanos, europeus, americanos e da Oceania que resultariam "uma arte-todas-as-artes". Diria ainda: “uma inspiração espontaneamente complexa.”

            À vida, Fernando Antonio Nogueira Pessoa chega em 1888 e dela se vai em 1935, na cidade de Lisboa. Passou uma parte de sua infância e pré-adolescência na África do Sul. Tais detalhes biográficos, repetidos à exaustão, são importantes para se vislumbrar alguns dados da carreira de poeta. Ter vivido na África do Sul, na cidade de Durban, colocou-o em contato com a língua inglesa, na qual também criou heterônimos e na qual também se expressou da mesma maneira que o fez em língua materna. E, além disso, um outro mundo cultural se lhe abre as portas e, neste sentido, em vez de se debruçar também sobre o novo, se debruça ainda mais sobre o seu mundo materno, principalmente quando se observa que Fernando Pessoa ignorou a África, por onde passou e onde viveu, e de sua obra em inglês também pouco ou quase nada se fala, mais por conta da crítica e de seu público do que por culpa ou intenção propriamente suas.

             Difícil é marcar o início de sua produção literária, mas sabe-se que desde criança escreve versos como, por exemplo, a seguinte quadrinha escrita em homenagem a sua mãe:
  
Eis-me aqui em Portugal
nas terras onde nasci
por muito que goste delas
ainda gosto mais de ti.

Segundo sua sobrinha, Manuela Nogueira, talvez pelo ponto de vista familiar, esta quadrinha guarda traços da criança inteligente que fora Pessoa. Segundo ela, está explícito nestas quatro linhas o amor à pátria, o amor à mãe e o medo de, já tendo perdido o pai, vir também a perder a mãe.



            Contudo e de qualquer maneira, segundo Massaud, sabe-se que ele integrou em sua personalidade literária tudo quanto constituía conquista válida do lirismo tradicional, aquele que, a largos traços, tem seus pontos altos nas cantigas de amor, em Camões, Bocage, Antero, Cesário Verde, Camilo Pessanha, etc., conseguindo superar e enriquecer, ainda de acordo com Massaud, a velha herança recebida, refletindo em si as grandes inquietações humanas do começo do século XX.

             Desta forma, para compreender a poesia pessoana é necessário entender que o poeta, além de guardar em si o espólio tradicional da poesia portuguesa, guardava também as inquietações de seu tempo, em função da Guerra, das modificações quanto à velocidade, quanto às máquinas no mundo ocidental, o que, certamente, formou seu caráter, deixando-o vazar para sua obra. E, ainda de acordo com Massaud, a conseqüência disto é que sua poesia se torna uma espécie de painel gigantesco dos registros das vicissitudes históricas de seu tempo tão conturbado e abalado pelos conflitos mundiais.

Então, diante deste grande painel, a partir de 1914, nascem seus heterônimos e é a partir do ano seguinte que sua contribuição para as revistas e publicações que impulsionariam o Modernismo em seu país começariam a surgir. A parceria de nosso poeta com Almada Negreiros e com Mário de Sá Carneiro é frutífera porque, juntos, lançam a revista Orpheu, citada acima, e que embora tenha circulado em apenas dois números, é o marco do Modernismo em Portugal, momento em que as mentes, segundo Massaud Moisés, se elevam para planos de universal indagação e para a tomada de consciência de uma angústia geral. A causa é óbvia: a Guerra de 14.

Este momento de nítida crise, provocada pela necessidade de abandonar as velhas e tradicionais formas da civilização e cultura, os coloca em direção à busca de novas fórmulas substitutivas, completa Massaud. O passado, caótico e destruído, abriria espaço para, exigindo até, a tal cosmovisão, que vive a ausência de verdades absolutas.


            Assim, no dizer de Massaud Moisés, Pessoa adiante com a ideia de cosmovisão, passa ao intento de ordenar o caos a sua volta, disposto a compreender os seres e as coisas, em busca de verdades que sejam capazes ou de resistir à impressão de desmoronamento total ou de superar a inconstância relativa de tudo, passando do relativo ao absoluto. Como, ainda de acordo com o professor Massaud Moisés, para entender o absoluto seja necessária uma multiplicidade de visões, era necessário, por isso, ser todos que existem, existiram e existirão, para ver e sentir como eles. Assim, é que Pessoa passa ao fenômeno da heteronímia. Pela voz de Álvaro de Campos, nos lembra:

Multipliquei-me, para me sentir,
Para me sentir, precisei sentir tudo,
Transbordei-me, não fiz senão extravasar-me.
                 
Porém, apesar de complexa, sua criação é consciente porque, no prefácio às Ficções do Interlúdio, é Pessoa quem diz: “Umas figuras insiro em contos, ou em subtítulos de livros, e assino com o meu nome o que eles dizem; outras projecto em absoluto e não assino senão com o dizer que as fiz.” Mais adiante, no mesmo prefácio, continua: “Compararei algumas destas figuras, para mostrar, pelo exemplo, em que consistem essas diferenças. O ajudante de guarda-livros Bernardo Soares e o Barão de Teive – são ambos figuras minhamente alheias – escrevem com a mesma substância de estilo, a mesma gramática, e o mesmo tipo de forma de propriedade: é que escrevem com o estilo que, bom ou mau, é o meu.” E diz que compara as duas porque são exemplos de um mesmo fenômeno, que é a inadaptação à realidade da vida. Porém, além da constante inadaptação em sua obra, o que mais chama atenção nisso tudo é o vocábulo: “minhamente”!

No mesmo Prefácio, continua o Poeta: “há notáveis semelhanças, por outra, entre Bernardo Soares e Álvaro de Campos. Mas, desde logo, surge em Álvaro de Campos o desleixo do português, o desatado das imagens, mais íntimo e menos propositado que o de Soares”. E completando seu parecer, diz: “por isso em Ficções do Interlúdio predomina o verso. Em prosa é mais difícil de se outrar”. Sim, outrar é agora o nosso vocábulo!

Os heterônimos são, assim, meios de mostrar a complexidade do real ao homem Fernando. Por não poder, lógico, se transformar em todos os seres viventes, pulveriza-se em seus heterônimos, símbolos literários, para através de cada um deles, entender a cosmovisão única que cada um apresenta e que, apesar de única, resulta de um mesmo tempo e das mesmas contingências vividas. O que vai mudar aí em cada um deles é a ótica, o ponto de vista que absorve os acontecimentos. Daí, as personalidades dos heterônimos, pessoas inventadas, contribuir para o estilo e temas literários apresentados, marcando a individualidade coerente, mas intrinsecamente ligada uma às outras pela mão pessoana, já que são, de uma forma ou outra, alter-ego do poeta.

Portanto, o jogo do ser ou do não ser, ou o jogo do ser e do não ser, a base de sua criação, faz de toda afirmativa ou idéia feita ser logo destruída, simplesmente destruída, negando toda ela que não implique em contradição e, assim, segundo Massaud Moisés, acaba reduzindo a nada aquelas ‘verdades’ aceitas e impostas pela tradição e o comodismo intelectual, contra o qual se bate Álvaro de Campos.

Pessoa, ao mesmo tempo em que foi poeta foi filósofo. Foi filosofando contra os deuses e o infinito que deixou a marca de sua existência pacata mas provando-a evidentemente conturbada. Porém, o sem número de seguidores e de admiradores, o sem número de homenagens e o reconhecimento dado a ele após sua morte há quase oitenta anos; o intento épico e alcançado de figurar ao lado de Camões como o maior poeta da língua portuguesa, além de outros aspectos, dão a ele o lugar merecido. Nas palavras de Massaud Moisés: “a mais alta vocação poética da Europa do século XX, vocação que nos coloca diante de uma excepcional aparelhagem estético-literária, das mais privilegiadas e estranhas da Literatura Portuguesa de todos os tempos”.
 
Nota: O site Casa Fernando Pessoa (www.casafernandopessoa.cm-lisboa.pt) traz a lista completa com mais de 70 personagens e heterônimos criados por Fernando Pessoa.


Este texto foi originalmente preparado para a edição número 3 da extinta Revista Leitura&Crítica.
Fernando Medeiros é Professor de Literatura.