Caetano Veloso - Internet |
Um dia, ainda na Faculdade de Letras da UnB -ali por 2002-, eu cursava a disciplina de Barroco e Arcadismo no Brasil e fiz um trabalho (muito mesmo) pretensioso, cuja ideia era estudar a Tropicália pelo viés barroco.
Fui bem na disciplina, mas o professor escreveu no trabalho, como correção, duas coisas: 1. O importante é que este trabalho te envolveu! 2. Mãos à obra! (Não lembro se era essa a ordem dos recados...)
Ou seja: Você está apenas começando, entendi. Hoje sei que apenas começava, mas nunca arregacei as mangas! Por isso sei que foi (muito mesmo) pretensioso... De qualquer forma esses dias achei meu trabalho e, para finalizá-lo, analisava O Quereres, de Caetano Veloso.
Tal análise (apenas um trecho daquele trabalho) segue abaixo exatamente como foi entregue ao professor, salvo uma ou outra alteração boba. Eu gostei e espero que você, meu leitor, também goste!
Trecho do poema na letra (tentativa) de Caetano |
O Quereres [1]
Caetano Veloso
Onde queres revólver sou coqueiro, onde queres
dinheiro sou paixão
Onde queres descanso sou desejo e onde sou só desejo
queres não
E onde não queres nada, nada falta, e onde voas bem
alta eu sou o chão
E onde pisas no chão minha alma salta e ganha
liberdade na amplidão
Onde queres família sou maluco e onde queres romântico,
burguês
Onde queres Leblon sou Pernambuco e onde queres
eunuco, garanhão
E onde queres o sim e o não, talvez; onde vês eu não
vislumbro razão
Onde queres o lobo eu sou o irmão e onde queres cowboy eu sou chinês
Ah, bruta flor do querer, ah, bruta flor, bruta
flor...
Onde queres o ato eu sou o espírito e onde queres
ternura eu sou tesão
Onde queres o livre decassílabo e onde buscas o anjo
eu sou mulher
Onde queres prazer sou o que dói e onde queres
tortura, mansidão
Onde queres o lar, revolução; e onde queres bandido eu
sou o herói
Eu queria querer-te e amar o amor, construirmos
dulcíssima prisão
Encontrar a mais justa adequação, tudo métrica e rima
e nunca dor
Mas a vida é real e de viés, e vê só que cilada o amor
me armou
Eu te quero e não queres como sou, não te quero e não
queres como és
Ah, bruta flor do querer, ah, bruta flor, bruta
flor...
Onde queres comício, flipper-video, e onde queres romance, rock'n'roll
Onde queres a lua eu sou o sol e onde a pura natura, o
inseticídeo
Onde queres mistério eu sou a luz, onde queres um
canto, o mundo inteiro
Onde queres quaresma, fevereiro; e onde queres
coqueiro eu sou obus.
O quereres e o estares sempre a fim do que em mim é de
mim tão desigual
Faz-me querer-te bem, querer-te mal, bem a ti, mal ao
quereres assim
Infinitivamente pessoal, e eu querendo querer-te sem
ter fim
E querendo te aprender o total do querer que há e do
que não há em mim...
Álbum Velô (1984), no qual se publica originalmente O Quereres |
Esse poema de Caetano, não
propriamente tropicalista, mas como ele próprio afirma ser-lhe a aventura
tropicalista sem fim, é talvez uma das mais barrocas de seu inventário.
Processando-se de forma cíclica, já
que se nos apresenta como o primeiro querer o
revólver e o último o obus, peças
bélicas, a letra é formada toda ela por meio de palavras excludentes que se
alternam de acordo com o querer do eu lírico e do querer do receptor da letra,
para quem se canta. A situação entre eles é de repulsão e, nesta repulsão, o
querer é bruto como uma flor. A sutileza de um desejo, tal qual a de uma flor,
é tomada como uma dificuldade, como algo bruto quando poderia não ser.
Assim, a ciclicidade da letra, os
quereres do emissor e receptor, a flor e, inclusive, o futuro do pretérito são
antitéticos. E entende-se inclusive o aspecto verbal antiteticamente porque se
joga aqui com a condição. Alguma coisa só seria
se outra deixasse de ser. Dessa
forma, até mesmo a condição implícita no tempo verbal completa, além da
ciclicidade, toda a intenção paradoxal e antitética da letra. Completa o
barroquismo evidente. A condição implícita pode estar também elíptica, já que, segundo
S. Sarduy [2], a
essência da mentalidade barroca está associada à elipse. Assim, a brincadeira com a linguagem sem deixar
explícito o dizer, sem verbalizar diretamente, é barrocamente elíptica.
Completa-se, nesse sentido verbal
implícito como se, por causa do trabalho da métrica e da rima, no verso tudo métrica e rima e nunca dor, numa busca da mais justa adequação, a dor
fosse presente – como o é. Então, a condição, o contraste é buscar a adequação
por métrica e rima, numa tentativa condicional de se chegar a tudo isso sem a
dor que normalmente se sente nesse trabalho de busca de afinação conjugal, em
que ambos são o que não querem ser e são o que um não quer do outro. Impossível
sem dor.
Tem-se ainda, levantando-se o léxico
dessa criação poética, pares de palavras, antíteses mesmo, que encerram ideias
profundamente condizentes à repulsão barroca. Tais pares, numa ampliação da
leitura, podem ser:
-revólver e coqueiro: guerra e paz;
-dinheiro e paixão: material e espiritual;
-descanso e desejo: paz e licenciosidade;
-desejo e não: licenciosidade e a negação categórica;
-querer nada e nada faltar: satisfação e excesso;
-voar alto e chão: agudo e raso: extremos em que se
está;
-pisar o chão e alma voar: o sensual e o espírito longe
na amplidão;
-família e maluco: ordem e desequilíbrio;
-romântico e burguês: valores opostos a
um mesmo tempo;
-Leblon e Pernambuco: particular e geral;
-eunuco e garanhão: castração e realização;
-sim e não x talvez: certeza e dúvida;
-lobo e irmão: traição e sinceridade;
-ver e não vislumbrar razão: firmeza e perda de
referencial;
-cowboy e chinês: ocidente e oriente;
-ato e espírito: físico e metafísico;
-ternura e tesão: sensual e erótico;
-livre e decassílabo: rebeldia e tradição;
-anjo e mulher: assexual e sexual;
-prazer e dor: positivo e negativo;
-tortura e mansidão: dor e prazer;
-lar e revolução: equilíbrio e mudança;
-bandido e herói: amoral e moral;
-comício e flipper-video:
maçante e diversão;
-romance e rock'n'roll:
final-feliz, suavidade (?) e choque, agressividade;
-lua e sol: escuro e claro;
-pura natura e inseticídio: vida e morte;
-mistério e luz: dúvida e certeza/ ignorância e
sabedoria;
-canto e mundo inteiro: particular e universal;
-quaresma e fevereiro: renovação e carnaval (festa da
carne: pecado);
-coqueiro e obus: paz e guerra, fechando o ciclo.
http://palavramansa.blogspot.com.br/2011/06/o-quereres.html |
Assim, nos primeiros pares,
percebe-se uma dependência entre eles (a paz e a licenciosidade, a
licenciosidade e o não), mas que vai se perdendo progressivamente e as palavras
passam a marcar alternância entre abstrato e físico, físico e valores sociais e
culturais. Tais alternância e ambivalência denotam o sentido e o espírito
barroco como resposta ao ser humano independente do século, mas que algumas
transformações temporais propiciem essa resposta coerentemente.
O que se percebe é uma tensão
estética que se desdobra na angústia humana patente, angústia tal proveniente
da dúvida e da certeza, equilíbrio e desequilíbrio, dor e paixão eternos e
cíclicos deste ou daquele século. Desta ou daquela obra de arte.
Mas, voltando à peça de Caetano,
fechando-a, ele nos presenteia com este verso: o que em mim é de mim tão desigual. Assim, comprovando seu espírito
e arte barrocos, nos diz que há nele próprio (ou em quem seja o eu lírico) algo
de desigual, e que assim, é bem provável, a flor seja mesmo bruta e a dor,
embora nunca a quisesse, sempre exista, pois se ele próprio
enxerga em si algo de diferente dele, os contrastes partem internamente para o
mundo e se eles são paradoxais a visão é, por força, tal qual. Assim, a prisão
que não será dulcíssima por isso, o levará eternamente ao querer inicial que o
move, porque tudo parte dele e retorna a ele pelo viés da dor. Porque tudo
parte de Deus. E retorna, claramente
em sentido Barroco.
Charles A. Perrone [3],
analisando a música brasileira contemporânea pelo viés barroco, em especial a
canção O que será, de Chico Buarque,
diz a respeito dessa canção: Daí a força
barroca do texto – a maravilha do ouvinte perante a abundância verbal e perante
seu universo com efeito infinito. Esse juízo justo cabe para a composição
de Caetano aqui analisada, porquanto as qualidades literárias tanto de uma
quanto de outra canção são observadas da mesma maneira por tal juízo.
Referências:
ÁVILA, Afonso (org.). Barroco, teoria e análise. São
Paulo: Perspectiva e Companhia Brasileira de Metalurgia, 1997.
VELOSO, Caetano. Verdade Tropical. São Paulo: Cia das Letras, 1997.
Obs.: Embora jamais me oponha, a intenção deste Blog, ao menos por enquanto, não é fazê-lo uma ode a Caetano. Motivos há e muitos, mas ainda o pretendo um lugar de assuntos gerais sobre Literatura!
Fernando Medeiros é professor de Literatura.