segunda-feira, 4 de agosto de 2014

Nelson Rodrigues - Um Anjo Mal Interpretado!


Nelson Rodrigues em sua foto mais célebre - Internet
Nelson Rodrigues começou pra mim de duas maneiras. Primeiro minha mãe horrorizada e dizendo, com sua ênfase exagerada peculiar e hereditária: Esse homem é um podre! E depois, eu ainda adolescente pude assistir, sendo talvez a única coisa que prestasse no semanário dominical de péssimo gosto, Fantástico, da Globo, aos episódios inspirados nos mais legais contos de A Vida Como Ela É...

Confesso que o fato de minha mãe dizer sobre ele –podre!– me instigou. Queria ver como e por que ele era assim podre! Hoje, depois de abandonar inexoravelmente a adolescência, momento em que o conheci, digo que Nelson Rodrigues, na minha humilde opinião, é um gigante da língua portuguesa. Um avatar contra as hipocrisias morais e sociais. Um paladino da moral. Um anjo pornográfico no dizer dele próprio. Genial e profícuo escritor, dono de um estilo literário peculiar. Um tarado, depravado, podre? Talvez, mas, indiscutivelmente, certeiro porque, se na sua família, caro leitor, não há nenhum dos exemplos da galeria rodrigueana de personagens (Claro que não! Na sua família? Nunca!), certamente você conhece alguém na sua rua, no seu prédio, no seu trabalho (de nome no diminutivo Ferreirinha, Glorinha, Dorinha, Otavinho) que se comporta como um típico personagem de seu elenco superior! Ou é, homem ou mulher, uma fofoqueira, invejoso, religiosa rezadeira e ao mesmo tempo mentirosa, tarado que passa a vida posando de bom moço. É Nelson Rodrigues um gênio incompreendido. E mais, muito mais!

Nelson Rodrigues é, antes de tudo e para começar, um exímio observador e descortinador da alma humana no que ela tem, a um só tempo, de mais secreto e evidente: a hipocrisia!

Mas, antes disso de hipocrisia, a vida de Nelson Rodrigues é típica do teatro de Nelson Rodrigues! Uma tragédia.

Ainda no começo da faculdade, naquelas disciplinas de Teoria Literária, teve uma aula em que discutíamos um crítico francês, se não me engano Dominique Mainguenau, que, grosso modo, defendia ardentemente que uma obra de arte literária é imanente aos detalhes mínimos da vida de um homem que por acaso é o escritor. Ou seja, a obra de arte literária é independente de quem a escreve. Outros vão contra, também porque, se sabe, as ciências humanas são dependentes do ponto de vista. Tanto melhor, já que, ao ler e estudar Nelson Rodrigues, não há como separar de sua obra sua vida, assim como não se precise saber de sua vida para saber de sua obra. Ela é imanente a isso, sem dúvida. Mas também fornece a quem a lê detalhes impressionantes ou, no mínimo, elucidativos de sua história.

Seu avô, homem rico, morreu de doença misteriosa na Europa. Sua avó, ainda grávida, volta ao Recife, de onde sua família é originária. No parto, ela morre. Os filhos, um deles Mário, o pai do futuro Nelson, ficam tutelados com um médico da família, o qual, segundo parece, apropriou-se indevidamente do dinheiro deles. Isto obriga os meninos a cedo trabalharem. Mário trabalha escrevendo, de jornalista, num Recife circa 1912, momento em que não era nada pacífico, dadas as querelas locais acerca do poder na capital do nordeste canavieiro e por todo o estado de Pernambuco. Mario casa-se com menina, dona Esther, de família protestante fervorosa, convertendo-se à sua religião. O que, também segundo parece, conversão de situação, tão somente para o casamento desejado. Mário tem problemas financeiros, mas dona Esther quer 12 filhos. Ela, firme, praticamente o obriga a deixar o Recife e ir ao Rio. Ele vai, mas volta. Ela o obriga de novo, ele vai. Ela, no Recife, vende tudo e segue com a então parte da prole para o Rio, e chega bem na hora em que o marido está desempregado.

São acolhidos no Rio, em 1916, na casa de Olegário Mariano, o Poeta das Cigarras. Mas logo Mário Rodrigues (que era gago e cego de ciúmes), se arruma, conseguindo emprego de jornalista no Rio, no Correio da Manhã, quando se muda com sua família para uma casa de subúrbio no Rio de Janeiro.

A este ponto que queria chegar: ao subúrbio. Onde estão as maiores inspirações de Nelson para sua obra se não nos subúrbios? Os tipos representados por ele, com exceção feita aos seus folhetins (e ainda assim falo considerando tão somente Meu Destino é Pecar e Asfalto Selvagem, porque são os únicos dois folhetins lidos por mim – até agora!), são em sua maioria suburbanos.

Caricatura de Nelson - Internet

Foi neste subúrbio no Rio, precisamente na Aldeia Campista, Rua Alegre, em que Nelson com seus 7 anos viu o mundo. Um mundo de vizinhas gordas e de brotoejas, às janelas observando tudo e todos, casadas com maridos magros e asmáticos, quando não tuberculosos, a tossir em uníssono. Nas casas suburbanas por que passou havia sempre a nojenta escarradeira, o banho era de bacia, os velórios eram em casa – os quais eram assiduamente frequentados pelas senhoras, mas para observarem o real sofrimento da viúva (este, um indício da hipocrisia).

Nelson, porque criançola ainda, aos 4 anos, estava de beijos, ou tentativa de, com uma garotinha de 3, foi logo, desde cedo, taxado de tarado e entende, aí, que algumas coisas lhe eram proibidas. Em seguida, vai à escola, onde era hostilizado pela sua cabeça grande e por já ter pelos nas pernas aos 7 anos. Por essa época escreve uma redação que já traz o embrião das tragédias que serão sua obsessão. Tal texto, que começa, inspirado no verso do poema As Pombas de Raimundo Correia, com “A madrugada raiava sanguínea e fresca”, horrorizou os professores e diretores porque se tratava, ora essa, de traição e assassinato.

Nesta casa suburbana, no sótão, eles acham um diário perdido e esquecido de uma adolescente, ex-moradora dali. Por essa época, morreu uma jovem vizinha deles, chamava-se Alaíde. Quem leu Vestido de Noiva sabe a importância e a influência que teve este diário encontrado em sua casa em sua meninice. E também quem leu essa mesma obra sabe quem é Alaíde no contexto rodrigueano.

Por essa época, também, lê Dostoievsky. Lê Victor Hugo, Zola, Camilo Castelo Branco, Machado, Eça, e o recém-falecido Augusto do Anjos. Este, ele declamava aos berros às suas paqueras, correndo atrás dos carros delas, querendo impressioná-las. Impressionar um amor adolescente com Augusto dos Anjos?!

Por esses dias dirige um suplemento de A Manhã, Alma Infantil, que ele faz imprimir e distribuir – em Recife – às escondidas e aproveitando-se do aparato do jornal de seu pai, atacando o padre diretor de um colégio recifense, no qual estudava seu primo, e acusando o religioso de perseguição e maus tratos ao garoto. Circulou pelo tempo em que Nelson se interessou por ele, 3 ou 4 números.

Desenhos de Roberto Rodrigues, irmão de Nelson, para o Jornal da família - Internet

Ao ler sua biografia, deliciosa narrativa de Ruy Castro, observei seu tempo e suas atitudes, refletindo (o que as leituras, quaisquer que sejam, devem fazer), sobre o biografado inserido em tal contexto. Nelson Rodrigues e seus irmãos, seu pai também –em certa medida–, eram resultantes ou concomitantes ao pensamento modernista. Digo: eles eram extremamente bem adaptados às ideias e ao comportamento moderno de sua época. Eles inovavam não só no comportamento, mas também, por exemplo, no aspecto gráfico do jornal da família, acompanhando o que Lobato já fazia anos antes.

O traço das caricaturas de Roberto Rodrigues (seu irmão), amigo de Cândido Portinari, ambos estudantes na Escola de Belas Artes do Rio, era revolucionário. Os dois, ainda na Escola, para driblar o pensamento academicista de seus professores, ao apresentarem seus trabalhos voltavam às técnicas tradicionais, enquanto o trabalho autoral, o verdadeiro, de ambos era de choque e de crítica contra a academia. Nelson não era diferente. Seu estilo, observado em seus textos, com sua pontuação peculiar e seu metralhar de argumentos e ideias, também o provam. Suas peças de teatro estouram principalmente a partir de Vestido de Noiva, de 1943, obra a qual, pela quebra da narrativa linear e pela construção e caracterização de seus personagens, antes de genial, é resultado claro do tempo em que viveu: o modernista. As reivindicações de 1922 estão todas nesse trabalho!

Fotografia oficial (uma das poucas) do espetáculo de estreia de Vestido de Noiva, 1943 - Internet

Tal tempo modernista se vê quando, no Rio de Janeiro, a convivência dos Rodrigues, não só nos tempos de sua chegada à cidade como ao longo da vida deles, era com gente da melhor qualidade: Cândido Portinari, Nássara, Gilka Machado, Olegário Mariano, Manuel Bandeira, Monteiro Lobato, Orestes Barbosa, Donga, Lamartine Babo, Ronald de Carvalho, Medeiros e Albuquerque, Di Cavalcanti, João Cabral de Melo Neto, José Lins do Rego, Sérgio Milliet, Gylberto Freire, Millôr Fernandes, Ary Barroso, Ataulfo Alves, Silvio Caldas, Heitor dos Prazeres, Paulo Mendes Campos, Dercy Gonçalves, Oswald de Andrade, Vinicius de Moraes, Carlos Drummond de Andrade, Procópio Ferreira, Dulcina de Moraes e, é claro, Zienbinski, e toda a turma em torno de suas primeiras peças, como Décio de Almeida Prado, Otto Maria Carpeuax, Fernanda Montenegro, Fernando Torres e mais adiante Augusto Boal.

Fernanda Montenegro e Nelson, 1974 - Internet

E o contexto social e político, e ainda cultural principalmente, também não eram indiferentes a tudo isso: Epitácio Pessoa, Nilo Peçanha, Arthur Bernardes, Afonso Pena, Pandiá Calógeras, Alceu Amoroso Lima, Getúlio Vargas, Simões Lopes, Washington Luís, Carlos Lacerda e seu pai Maurício de Lacerda, os Matarazzo, dom Jaime de Barros Camara, dom Helder, Roberto Marinho e muitos outros.

Nem todos grandes amigos, alguns desafetos, outros amigos e depois desafetos, outros desafetos e depois amigos, mas todos grandes nomes em convívio num mesmo tempo e num mesmo espaço.

Além deles, também todo o universo esportivo e futebolístico de seu tempo, com seus figurões e grandes atletas, dos quais este que vos fala não saberá enumerar um sequer por ser este universo muito distante e desinteressante para ele...! 

Quando o pai de Nelson, Mário Rodrigues, se estabelece como jornalista e proprietário do matinal carioca A Manhã, o jovem Nelson e seus irmãos convencem o pai a trabalharem com ele. Roberto, o seu irmão bonitão, era desenhista e artista plástico, como já dito, ficando assim responsável pela arte, desenhos e caricaturas do periódico. Nelson, então aos 13 anos, ganha a coluna que também mais tarde lhe serviu de inspirações literárias e folhetinescas porque ele noticiava casos de juras adolescentes de amor eterno ao luar, que normalmente acabavam em tragédia. E, além de noticiá-las, Nelson também aumenta, melhora, faz suspense, cria e recria detalhes para “interessar” mais os leitores. Os leitores de hoje de Nelson, ao lerem rapidamente e por exemplo rápido, Asfalto Selvagem e Álbum de Família, percebem a relação direta de sua obra e o convívio com esse tipo de matéria e assunto.

Capa de uma das edições de A Manhã - Internet

A Manhã ia se estabelecendo como jornal de situação e a influência, a fama, a importância, não só do jornal como também dos Rodrigues ia crescendo em igual proporção. Era um jornal de grande penetração e muita aceitação por parte da sociedade leitora. A Manhã se converte em Crítica, jornal do mesmo Mário Rodrigues, e, um dia, um dos detalhes impressionantes da vida de Nelson: acontece o assassinato de seu irmão Roberto na redação do jornal da família.

O Rio descobre uma mulher que traía o marido com seu médico. O jornal de Mário Rodrigues vai publicar o escândalo! Porém, antes da publicação, seus repórteres telefonam para ela, Sylvia Thibau, para que concedesse uma entrevista de esclarecimentos. Ela diz que não fala ao telefone, mas que vai à redação de Crítica tal dia e hora. Antes, ela passa na redação de outro jornal, O Jornal, do qual era colaboradora, e também vai à redação de Diário da Noite, dos Diários Associados de Assis Chateaubriand, para que jornalistas amigos tentassem e conseguissem bloquear a matéria. Mas não conseguiram, de maneira que ela pessoalmente se dirige a Crítica. Pede-lhes que a matéria seja suspensa, mas àquela hora, nada mais poderia ser feito, já que o jornal já estava fechado e na gráfica, pronto para ser impresso, se não impresso. Ela ainda fala com mais um funcionário de Crítica, o desenhista e caricaturista Roberto, quem não lhe garante nada, dada a hora, mas que também tenta acalmá-la, dizendo-lhe que ela seria tratada com atenção e consideração e tal. Além do mais, era ele só o desenhista, não tinha nada com a matéria!

Roberto Rodrigues, o irmão assassinado - Internet

No dia seguinte, sai o jornal, com tal escândalo na manchete. A senhora, friamente, leva os filhos à escola, no caminho compra numa loja de armas uma calibre 22, entra na redação de Crítica procurando Mário Rodrigues, que não estava. Pergunta também por Mário Rodrigues Filho, que também não estava. Vai conferir e encontra, então, Roberto em quem atira uma só vez e acerta o abdômen do desenhista. Quando a desarmam, ela ainda diz que queria matar o senhor Mário ou o seu filho, mas que estava satisfeita. Nelson assiste à cena e a família entra em crise por motivos óbvios, entra em processos judiciais, julgamentos, etc., contra Sylvia Thibau. Roberto é velado e a todos que entram seu pai lhes grita, agarrando-os pelo braço: Esse tiro era para mim! Para mim! E, indo ao caixão e olhando o corpo do filho, dizia: Eu vou te vingar! Eu vou te vingar!

Autorretrato de Roberto Rodrigues - Internet

Tempos depois, Sylvia era julgada e inocentada. Os Rodrigues perdem o pai Mário de trombose cerebral. Era 1930 e os augúrios políticos no Brasil agora sopravam contra a República do Café com Leite, regime defendido pela Crítica. Ou seja: com o pai morto, a política do país agora liderada por Vargas, inimigo dos Rodrigues, então o jornal fecha empastelado, entre tragédias, mortes e a Revolução de 30. A família de Nelson Rodrigues então enfrenta a penúria e a tuberculose, sem dinheiro e praticamente sem comida praquele tanto de gente.

Sylvia Thibau - Internet

Nelson contrai tuberculose várias vezes; seus irmãos, e ele também, amargam penúria, quase fome. Mas apesar das intempéries, de sérios e grandes pesares, eles se refazem. Devagar, mal e com muitas dificuldades se refazem. Mário Rodrigues Filho monta e abre seu jornal. É este irmão de Nelson um grande jornalista e um grande homem da sociedade carioca, já que, dada sua vontade de vencer e seu talento indiscutíveis, é de sua concepção e execução projetos e eventos que hoje representam não só o Rio como o Brasil. É de sua autoria a ideia de os times cariocas competirem entre si. Tal evento esportivo, muitas e tantas vezes patrocinado exclusivamente por ele, resultaram no Campeonato Carioca e no Campeonato Brasileiro, o que hoje, embora o autor deste texto não saiba falar certo e direito, sabe porém que são eventos de grande apelo social no Brasil. Este seu projeto impulsiona, mesmo tendo como figura central contrária, o peso de um Carlos Lacerda, a construção do Maracanã, cujo nome é dado em sua homenagem, Estádio Mario Filho.

É de sua autoria também o incentivo da competição entre as escolas de samba do Rio de Janeiro, evento que, apesar das críticas passíveis e embora seja DO Rio de Janeiro, querendo ou não, feliz ou infelizmente, representa a cultura brasileira...

Refeitos os Rodrigues, Nelson sempre trabalhou como jornalista e como jornalista era ele o grande incentivador e o maior publicitário de si mesmo. Ele era, o que se pode dizer, um cabotino. Ele próprio se defendia e se anunciava, às vezes assinando seu nome, às vezes pseudônimos, às vezes nem assinava. Mas escreveu muito em sua defesa e explicando o que produzia para o entediante teatro de seu tempo. E precisava fazer porque os de seu tempo, já em seu tempo, viravam-lhe a cara, torciam-lhe os narizes, discriminando-o ou hostilizando-o mesmo. Seu teatro era então um absurdo!

Nelson Rodrigues em cena em Perdoa-me Por Me Traíres (1957) - Internet

Mas por que era um absurdo? Ou ainda: Por que é um absurdo? Será porque ele descreve o comportamento moral da sociedade brasileira? Um comportamento hipócrita, um comportamento, que como tal, é algo praticamente coletivo e usual, mas que acontece por baixo dos panos e, como nossa cultura só permite por baixo dos panos e não às claras, quando alguém a descortina é ele um tarado? Um tarado obsessivo porque tão somente mostra e aponta a ferida moral social?

É claro, nosso mestre exagera. Mas ele está fazendo palco. O exagero é um artifício, é uma estratégia teatral e dramática, mas o que não retira a força de uma crítica social contundente. É claro que não vemos alguém se automutilar, cortando-lhe seu órgão genital em protesto a um segredo guardado e escondido por anos e só revelado tarde demais. Será mesmo que não?

É claro que não vemos nem veremos a competição entre duas irmãs, odiando-se uma e outra mortalmente, pela posse do amor de um mesmo homem. Será mesmo que não?

É claro que não vemos mulheres casadas, donas de casa, afetuosas para com seus filhos e maridos, que saem à tarde para o encontro, casual e proibido, com outro homem, também casado e, àquela hora e dia, matando um dia de serviço. Será mesmo que não?

Claro que não vemos maridos, honestos e honrosos de seus deveres domésticos e sociais, saírem madrugada afora em busca de uma aventurazinha qualquer. Será? Nem vemos casos de homossexuais obrigados a abdicarem de sua natureza em função de um casamento de arranjo –moral, social, familiar. Claro que não, ora essa!

Mas se tudo isso é evidente e salta aos olhos, recheia programas vulgares de TV e de rádio e até novelas campeãs de audiência, recheia a vida ociosa de velhas hipócritas e mexeriqueiras de janela e de banquinhos de praça, por que não levar tais temas aos palcos? À literatura? Por que não? E, se sim, levando ao palco, por que quem os escreve é ele, para usar os epítetos de sempre, o obsessivo e o tarado? E por que não seria ele somente o que ele era e queria ser: o crítico dessa falsa moral? Ou, ainda, por conseguinte, um dos senão o maior dramaturgo, da língua portuguesa, não só pela coragem de fazê-lo, pela atitude modernista, mas pelo óbvio e evidente estilo literário de grandiosíssima qualidade?!

Minha intenção para agora era passar à análise de uma de suas peças, tentando dar respostas às perguntas acima. Já até a tinha escolhido. Queria falar sobre Álbum de Família (escrita em 1946, liberada em 1965 e somente encenada pela 1a. vez em 1967), obra que me chocou quando a li, e li adulto já, mais de 40 anos depois de sua publicação. Era a intenção, como ia dizendo. Mas o texto já vai longo. Me preocupa a paciência do meu leitor –se houver um. Então faço uma rápida, rápida mesmo, análise tão somente para me satisfazer ao dizer acerca do que sinto sobre esse texto.

Internet

Lido Álbum de Família, quis encená-la, com meus amigos mesmo. Produção mais que amadora. Caseira. Acontece que eles não a leram e, como não somos nem éramos profissionais, meu fito malogrou. Tudo bem. Ou menos mal. Não saberíamos conduzir aquele complexo drama familiar ao seu ápice como pede o texto. Passada minha vontade inicial, volto à peça com certa frequência, de tempos em tempos, às vezes menores, às vezes maiores. Mas sempre, sempre mesmo, o que me incomoda, o que me chama atenção, o que me choca é aquela menina, aparentemente tendo sido estuprada por Jonas, o patriarca da família personagem o qual, cumpre observar, guarda uma incrível semelhança física com Cristo, grita e geme praticamente toda a peça. Tal personagem está em trabalho de parto e, enquanto a cena se desenvolve, ela grita. A cena corre um pouco mais, e ela grita. Às vezes alguém em cena faz menção ou por incômodo, ou por irritação, ou por pena (passageira) e ela grita. Ela grita sem sequer aparecer uma só vez em cena. Seus estertores são e estão em off. Até que, no fim da peça, ela enfim morre por ser "estreita", conforme dizem todos (Jonas e sua mulher dona Senhorinha, tia Rute e os filhos do casal em cena).

Além do mais, cada um dos três atos começa ironicamente: principia com os personagens prostrados em cena como se fosse uma foto de seu álbum de família. Momento em que o speaker narra (também em off), com entonação e ênfase feliz e empolgada, as belezas e os primores de cada um em particular e de cada um em família. A ironia do estilo enfático do narrador é primorosa! Vale conferir.

Com Álbum de Família, sua terceira peça, Nelson Rodrigues amargou e arrematou para sempre o título de maldito, já que, vindo de uma tradição iniciada maldita com A Mulher sem Pecado (1941) e Vestido de Noiva (1943) ele, neste Álbum de Família, a enfatiza porque, além desses detalhes mínimos listados acima, a peça ainda mostra incesto (de Jonas para sua filha Glória e de dona Senhorinha para seu filho Nonô e de Guilherme, filho do casal, para sua mãe dona Senhorinha dentre outros, sim, outros!), homossexualidade (entre Glória e uma sua amiga de internato), traições constantes e evidentes de Jonas com qualquer menina (a dos gritos em off) e ou mulher (tia Rute), desejos extraconjugais (de dona Senhorinha) etc.

Assim, é como acerta Luiz Arthur Nunes: Suas histórias lidam sempre com situações extremas e ações extraordinárias. Os personagens, seus agentes, são, portanto, necessariamente criaturas excepcionais, movidas por forças obscuras e avassaladoras, incapazes de comedimento ou concessão.

Nelson Rodrigues - Internet

Com tudo isso e por tudo isso, nosso mestre amargou ostracismo. Buscou construir uma obra nova, ousada e modernista, mas seu tempo conduziu a ele próprio e aos caminhos da dramaturgia nacional para outros lados, outras intenções, outro panorama. No fim dos anos 60, aparece Plínio Marcos e, durante os anos 70 (quando o país mergulhou no processo ditatorial radical), toda uma geração de autores mostrou sua rebeldia e revolução em obras contrárias ao reacionarismo da época. Adiante, Plínio Marcos inaugura o diálogo com as plateias jovens –em 1967 ele leva à cena Dois Perdidos Numa Noite Suja. Além disso e deles, Leilah Assumpção (Fala Baixo Senão Eu Grito), Consuelo de Castro (À Flor da Pele), Antônio Bivar (Cordélia Brasil), Mário Prata, Timochenco Wehbi, José Vicente de Paula e outros, dentre os quais até O Rei da Vela (1937, encenado em 1967) vem para sintetizar o progressismo ideológico demandado pela época que já não era mais como a de Nelson quando de seu Vestido de Noiva...

Observo ainda que, nas décadas posteriores, foi o cinema que abraçou a obra rodrigueana. Porém, encenada e levada às telas pela chanchada e logo pela pornochanchada, sua obra foi mal interpretada e mal aproveitada, relegando-lhe, de novo e como sempre errôneo, o título de tarado, obsessivo, depravado, desviado e tal. É, por isso, como disse e digo a partir do título deste texto, um anjo/autor mal interpretado. Fizeram de sua obra aquilo que viram nela, o que quiseram enxergar nela, sem se ocuparem ou sem entenderem sua real intenção e seu real objetivo.

Assinatura de Nelson Rodrigues - Internet
Foi Manuel Bandeira, sendo contemporâneo de Nelson Rodrigues, ainda lendo os originais (baita privilégio!) de Vestido de Noiva, naquele longínquo 1943, quem disse: Bom teatro o que sacode o público. Nelson Rodrigues sacode-o, e tem força nos pulsos. (...) Nelson Rodrigues é poeta. Talvez [Nelson] não faça, nem possa fazer versos. Eu sei fazê-los. O que me dana é não ter como ele esse dom divino de dar vida às criaturas da minha imaginação. Vestido de Noiva em outro meio consagraria um autor. Que será aqui? Se for bem escrita, consagrará... o público. 

E, se eu puder contar como seu público, dou-lhe tudo e todos os louros como meu apoio por menor que seja e que valha.

É só.
Fernando Medeiros é professor de Literatura.

Bibliografia:
Bravo! Junho de 2000 - Edição número 33 - Nelson Rodrigues. 
CASTRO, Ruy. O Anjo Pornográfico. São Paulo: Cia das Letras, 19922.
MAGALDI, Sábato. Panorama do Teatro Brasileiro. 5a. ed. São Paulo: Global, 2001.
MAGALDI, Sábato. Teatro da Obsessão: Nelson Rodrigues. São Paulo: Global, 2004.
RODRIGUES, Nelson. Teatro CompletoRio de JaneiroNova Aguilar, 2003.