Voltar a falar de Clarice Lispector para mim é sempre redundante. O que já não se falou sobre ela que é o maior vulto feminino da Literatura e do Modernismo nacionais?
A escolha do tema desta nova atualização é simples. Meus alunos precisam dela para o vestibular. Sim, já dei essa aula. Mas fiquei incomodado com o incômodo deles diante da leitura forçada deste pequeno grande livro de contos lispectorianos.
Poderia me demorar mais ainda longamente agora falando sobre o hábito de leitura que eles, os meus e os alunos de quase todos os professores, não têm e também sobre a leitura obrigatória e forçada como desestímulo à própria leitura. Mas isso também é repetitivo e ser repetitivo por repetitivo, fico com ela, Clarice, quando por nada, por estar entre uma das maiores entre os maiores.
Há o Felicidade Clandestina livro e há o Felicidade Clandestina conto. Há também o Clandestina Felicidade, que é um curta-metragem de 15 minutos, disponível na rede, filmado em Recife por recifenses há mais de 10 anos. Vale a pena conferir: é uma adaptação livre, mas bela. Lírica e com o doce e delicioso sotaque pernambucano!
No Felicidade Clandestina livro, também está o conto O Ovo E A Galinha. Vamos agora um a um e um de cada vez.
Felicidades clandestinas
Felicidades clandestinas
O livro surgiu de um convite feito à autora para escrever periodicamente ao Jornal do Brasil. Perguntaram-lhe, já com alguns textos publicados a que gênero pertenciam e ela respondeu que isso de gênero não a interessava mais. Ela disse: Meu livro é. Clarice não podia ter dado outra resposta. Digo isso mesmo sem ter sido, ao menos, seu contemporâneo, mas vejo tal resposta como algo que lhe seja peculiar. Ela é misteriosa, isso já não é mais novidade e talvez ela usasse desse seu ar de mistério para compor a própria imagem que “vendia” ao público.
Não é porém este o assunto nem isso apresenta relevância literária. O fato de seu livro tão somente ser nos dá a idéia de que então tal obra está aberta a diálogos diversos e aberta a sobreposições de gêneros ou apenas poder ser um lugar de experimentos tais que o exercício literário, talvez em trabalho metalingüístico, seja posto em evidência ou em questionamento.
Por quê? Perguntamo-nos. Porque, de verdade, sobre o que escreve? Porque, de verdade, qual seu assunto? E, assim, se a obra está aberta a tudo isso, sua interpretação pode ser ainda mais profunda e difícil, o que este blog, com a intenção de ser rápido, não dará mesmo conta.
Em Felicidade Clandestina livro, seus contos estão abertos ao fluxo de consciência típico e característico da autora, o foco narrativo é quase sempre em 1ª pessoa e, lhe podendo aparecer a narradorA, ela então ali estará, formalizando assim outra de sua marca principal: a feminidade.
Filme Clandestina Felicidade de 1998 - Beto Normal e Marcelo Gomes - Youtube
Embora a classificação de gênero a ela não interesse mais, o livro se classifica como de contos sim e, a despeito de serem do gênero narrativo, às vezes as categorias da narrativa não são respeitadas, ficando comprometidos ora o tempo, ora o espaço e ora até mesmo o enredo.
As revelações largamente utilizadas pela autora, cuja nomenclatura usual é EPIFANIA, podem ser definidas como uma manifestação ou percepção da natureza ou do significado essencial de uma coisa; também se completaria tal definição com a idéia de apreensão intuitiva da realidade por meio de algo geralmente simples e inesperado (como um lugar-comum ou uma pessoa vulgar).
Esse lugar comum pode ser o corriqueiro, o banal, o dia-a-dia repetitivo e vazio. A pessoa vulgar é uma pessoa comum. Uma pessoa simples que, embora simples, por tantas reflexões interiores por meio de seu fluxo quase interminável de consciência, se torna uma pessoa interiormente interessante, uma pessoa de pensamentos às vezes confusos, mas totalmente pertinentes ao que se refere viver e estar vivo.
No livro de contos, além de se observar presente uma narradorA – elemento diferencial quando comparado com a tradição literária nacional – observa-se tal narradorA em processo de crescimento e discernimento diante da vida e das coisas, num claro exercício existencial.
Felicidade Clandestina conto começa por exigir uma reflexão de seu título. Se ser clandestino é ser ilegal, por que então a felicidade lhe é clandestina? Roubada? Ilegal?
Seu enredo, talvez o mais linear da obra, a meu ver se organiza em contrastes: a menina, dona do livro As Reinações de Narizinho, objeto de desejo da narradora, é “Pura Vingança” é de “Calma Ferocidade”, tem planos de “Tranqüilidade Diabólica”. A narradora sai todos os dias correndo e pulando, seu modo estranho de andar pelo Recife, para buscar o livro e volta, decepcionada, bem devagar. A dona do livro é feia, gorda, cabelo crespo, peituda. Ela, a narradora, e suas amigas são “achatadas”, além de serem bonitinhas, altinhas e esguias.
Porém o contraste mais evidente talvez seja o de que a menina feia, além de sua feiúra, tem algo que ninguém tem, e que a narradora quer: o pai dono de livraria. A menina bonitinha tem a beleza (talvez invejada pela outra), mas não tem o livro.
Porém o contraste mais evidente talvez seja o de que a menina feia, além de sua feiúra, tem algo que ninguém tem, e que a narradora quer: o pai dono de livraria. A menina bonitinha tem a beleza (talvez invejada pela outra), mas não tem o livro.
Alguns de meus alunos viram, ao ler o conto comigo em sala, a narradora se colocando na posição de coitadinha. Outros não. E outros entenderam a visão dos que a viram como coitadinha como uma espécie de submissão da narradora ao querer o livro: se submete porque quer lê-lo.
Todas válidas, mas o choque que a narradora tem ao enfim ter o livro em mãos não acontece sem antes a mãe da menina (dona do livro) ter também sua epifania. A mãe se horroriza diante da “potência de perversidade” da menina, esta que escolhe a narradora para seu exercício de terrorismo e de egoísmo perverso, já que nem sequer querer ler o livro a garota quis.
Quando enfim a menina tem As Reinações de Narizinho em mãos, sua leitura, se ocorre integral, ocorre porém lentamente. Ela se demora para ler. Adiando sua leitura, adiando sua felicidade. Quanto mais demorasse, talvez tivesse por mais tempo a alegria de ter e de ler o livro. Então, assim, por que é clandestina sua felicidade?
Ela não ganhou o livro, mas pôde ficar com ele “pelo tempo que quisesse” e isso era mais que ter o livro, segundo ela mesma. Sua felicidade é clandestina porque lhe era ou lhe foi proibida a leitura ou a posse do livro, ou pela maldade da dona ou por não poder comprá-lo. Mas ela consegue ter o livro, “pelo tempo que quisesse”.
Então, sua epifania ao ter o livro quebra certas imposições, ou paradigmas, até mesmo sócio-econômicos, já que não podia tê-lo, mas agora tem. E por ser também uma leitorA, quebra o paradigma sexual, patriarcal, machista. Ela também pode ler e se apropriar do conhecimento, do saber, o que também lhe era (ou foi) proibido por uma tradição moral e social. Ela também pode ler e se apropriar do conhecimento da mesma forma, como terminando o conto ela diz, “como uma mulher com seu amante”, que, mesmo sendo clandestino seu amor ou sua felicidade, ela pôde e pode ter e, como com relação a seu amante, não quer perdê-los.
O Ovo E A Galinha
Talvez seja este o conto mais característico da obra – como um todo – de Clarice Lispector. O fluxo de consciência, as indagações e afirmações de tão obvias e perturbadoras, as reflexões em torno do óbvio e os constantes questionamentos existenciais e epifânicos são suas marcas evidentes e também presentes ali.
Ali em cima falei sobre a classificação de gênero da obra. Disse que as categorias da narrativa às vezes são desrespeitadas e o são em função da quebra da linearidade. O enredo, um dos elementos da narrativa, em O Ovo E A Galinha é subvertido porque, por assim dizer, a narradora também “se perde”, já que começa falando do ovo, passando ao ovo e à galinha, dando “sobrenome” ao ovo, que é “o ovo da galinha”; depois ela passa a falar de um “Eles”, reconhecidos por “agentes”, nos quais ela também se inclui, e depois volta ao ovo dizendo que “Por devoção ao ovo eu o esqueci”, para finalizar o conto.
A palavra “ovo” aparece 164 vezes ao longo da narrativa.
As simbologias atribuídas ao ovo e à galinha são mesmo muitas. Mas aquela brincadeira, que, de tão repetida já virou clichê, sobre quem terá vindo primeiro, se foi o ovo ou a galinha, pode ser uma das representações mais evidentes porque traduz o ciclo da vida. O ovo, cuja forma lembra um círculo e que encerra em si mesmo uma vida em potencial, dentro de um envoltório, pode apresentar um significado metafórico que, segundo Antonio Houaiss, é de causa primeira, germe, origem ou princípio. E ao mesmo tempo em que o ovo é liberdade porque é vida, pode ser opressão, porque fecha ou guarda dentro de si esta vida em potencial.
Embora longo e, por vezes, até repetitivo, este conto se apresenta mais rápido, já que as considerações acerca do óbvio que é o ovo e que é a galinha que põe o ovo são, entre si, comuns e por isso nos levam às mesmas reflexões.
A narradora termina o conto com uma resignação peculiar e evocando os tais “Eles”, os agentes, que lhe cobram e ela passa a aceitar. Termina indo dormir o sono dos justos por saber que sua vida fútil não atrapalha o fluir do tempo nem da vida em geral, já que “Eles” pretendem e querem a narradora, um ser qualquer e comum, de fato distraída, desinteressada e alheia às questões vitais que de fato importam.
Fernando Medeiros é professor de Literatura.
Bibliografia consultada:
DICIONÁRIO HOUAISS DA LÍNGUA PORTUGUESA. Objetiva: Rio de Janeiro, 2001.
LISPECTOR, Clarice. Felicidade Clandestina. Rio de Janeiro: Rocco, 2009.